sábado, 2 de fevereiro de 2019



PRÓXIMO -CARTAS
02 DE FEVEREIRO DE 2019

PAULO GLEICH

A primeira carta que tenho lembrança de ter escrito foi lá pelos sete anos, após uma noite conturbada: tivera um pesadelo horrível e, por alguma razão, quisera compartilhá-lo com uma de minhas irmãs maiores, que não vivia na mesma casa que eu. A carta jamais chegou à destinatária, pois minha mãe resolveu por preocupação guardá-la, mas o mero ato de escrevê-la teve uma função catártica: naquelas linhas, compartilhei minhas grandes angústias de menino.

Já na adolescência, quando vivi durante alguns anos em outro país, as cartas eram parte significativa do cotidiano. Sem as possibilidades de comunicação de hoje em dia, com ligações telefônicas internacionais a preço de ouro, eram o que permitia o contato com quem havia ficado. Centenas delas atravessaram o Atlântico naqueles anos, compartilhando as novas experiências, mas também aprofundando relações através da escrita - como aconteceu com meu avô, até então uma presença mais distante em minha vida.

A correspondência não se limitava a essa ponte aérea: na escola, sem WhatsApp, e com a ânsia adolescente de conversar e compartilhar, dividia boa parte do tempo de aula com a escrita de cartas que, após o toque do sino, eram trocadas com amigos e crushes. A escrita não era apenas um antídoto à monotonia das aulas, mas também uma forma de fazer presentes aqueles com quem compartilhava a deliciosa e difícil travessia daqueles anos de formação.

Mantive o hábito de escrever cartas nos últimos anos do Ensino Médio, mas, pouco a pouco, elas foram sendo substituídas pelo correio eletrônico, quando a internet passou a fazer parte do cenário doméstico. Parecia mágica: em questão de segundos, a carta chegava a seu destinatário em qualquer lugar do mundo. Não era mais preciso esperar dias ou até semanas, o que impôs outro ritmo à conversa escrita: as longas missivas foram dando lugar a textos mais breves, se aproximando mais de uma conversa.

Volta e meia, me pego pensando em cartas que gostaria de escrever: a um amigo de quem não tenho notícias há anos, a meu primeiro psicanalista, com quem agora compartilho o ofício, a pessoas de quem a vida me afastou, mas que ainda sinto próximas. Raramente, porém, vou além do devaneio: sempre acabo adiando essa escrita, como se o tempo que uma carta requer já não coubesse no meu tempo, como se fosse quase impossível (me) pensar como escritor de cartas.

Hoje, com a possibilidade de falar com qualquer pessoa a qualquer momento, as cartas parecem ter pouco lugar e função. Ganhamos em velocidade, mas temo que tenhamos perdido em densidade: escrever uma carta é, mais do que uma forma de comunicação, também de introspecção, de registro da experiência. Com celulares e afins, nos comunicamos de forma fragmentada, pontual, instantânea, o que se reflete em nossa experiência subjetiva: somos feitos pelas tecnologias que inventamos, sem nos darmos conta.

Alguns amigos e conhecidos têm resgatado algo dessa experiência, ao escrever cartas coletivas que enviam, por e-mail, aos que desejam acompanhá-los. Talvez seja um sinal de que estejamos aos poucos nos dando conta de que precisamos dessa experiência narrativa um pouco mais consistente, menos superficial, para nos situarmos no mundo. A tecnologia nos traz muitas novidades e benefícios, mas se embarcamos com muito afã em seu avanço vertiginoso, podemos estar deixando para trás "velharias" fundamentais.

PAULO GLEICH

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