04 DE NOVEMBRO DE 2017
CLÁUDIA LAITANO
ELA DISSE, EU DISSE
Os personagens na berlinda mudam, mas a discussão e o desfecho - a conclusão de que provavelmente nunca vamos concordar - em geral são os mesmos. Aconteceu de novo nos últimos dias, quando vieram à tona as acusações de assédio sexual envolvendo os atores Kevin Spacey e Dustin Hoffman e outras figuras de destaque de Hollywood, na esteira das denúncias em série contra o produtor Harvey Weinstein.
Minha filha de 19 anos não tem dúvidas de que Kevin Spacey merece todas as desgraças que desabaram sobre sua cabeça desde que o ator Anthony Rapp revelou ter sofrido uma tentativa de abuso sexual em 1986 - quando ele tinha apenas 14 anos, e o astro de House of Cards, 27. Sem entrar no mérito da denúncia neste caso em particular, faço parte da geração que, por princípio, se assusta com a velocidade com que acusações, veredictos e sentenças são expedidos no tribunal da internet.
O argumento dela: errou, tem que responder pelo erro. O meu argumento: nem todos os erros têm a mesma gravidade, e o linchamento virtual tende a tratar o estupro e a cantada inconveniente ou inapropriada da mesma forma. O argumento dela: a internet não condena ou pune, apenas dá repercussão ao que as pessoas estão dizendo. O meu argumento: em muitos casos, a pena é a própria repercussão, e um tweet pode ser tão mortal quanto uma cadeira elétrica para uma reputação. O argumento dela: quem não deve não teme. A minha dúvida: e se uma pessoa for acusada injustamente? A certeza dela: se for inocente, vai conseguir provar, e se não for, vão aparecer outras denúncias. (Aqui, ponto para ela: depois da primeira acusação contra Kevin Spacey vieram outras, sempre de atores muito jovens na época do assédio.)
Para ela, criador e criação se confundem. Para mim, não há problema algum em continuar gostando de uma obra produzida por um canalha. (Todas as obras são maiores e melhores do que os seus autores.) Ou seja: se dependesse de mim, a série House of Cards não seria cancelada.
O fato de já sabermos, antecipadamente, que não vamos concordar não nos tira o interesse de falar sobre esse e outros assuntos. Pelo contrário. Considero um privilégio ter uma interlocutora qualificada de 19 anos, mesmo que nem sempre, ou quase nunca, concorde com ela sobre assuntos que envolvem a maneira como as pessoas se expressam e se relacionam nas redes sociais. O exercício de tentar compreender como o seu raciocínio e seu sistema de valores operam em situações práticas me ajuda a entender não apenas como ela e boa parte da sua geração pensam, mas também por que eu e boa parte das pessoas da minha idade pensamos e sentimos de um jeito tão diferente.
A origem desse desacordo é a forma como a geração dela e a minha se relacionam com a vida virtual. Quem já era adulto quando a internet surgiu nunca se sentirá completamente confortável nesse ambiente caótico em que público e privado se embaralham ou sequer fazem sentido em separado. Para os nativos digitais, o ruído e a estridência são a trilha sonora a que seus ouvidos foram habituados desde o berço. Eles acreditam que esse caos se autorregula através de uma lógica própria nem sempre evidente para olhares destreinados.
Seus pais desejam, de coração, que eles estejam certos.
CLÁUDIA LAITANO
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