domingo, 26 de novembro de 2017

Tempo que passa vira trunfo para os 'sem-idade'

Era a terceira cirurgia para hérnia de disco. Deitada de bruços, a arquiteta Sílvia Helena Duarte Vaz, 62, exibia para a equipe médica o corpo ainda mais tatuado que da última vez.

"Você acha que ainda tem idade para fazer tatuagens desta maneira?", questionou um dos médicos.
"Claro!", respondeu a arquiteta. "É agora que eu estou na idade das certezas."

Vaz diz que envelhecer tem sido um processo libertador. "Gosto cada vez mais da minha aparência. Sou divertida. Quero mais é experimentar."
Ela é a expressão de uma transformação social recente -e ainda tímida- que vem embaralhando antigas e rígidas noções de imagem e estilo de vida associadas a pessoas em idades maduras.

AO SEU TEMPO
Idade ganha vida nova
A socialite Teresa Fittipaldi
Desde que fez 50 anos, ela desafia padrões estéticos e comportamentais da idade.
Mudou-se para Arraial d'Ajuda, no sul da Bahia, deixando em São Paulo o filho único, então com 18 anos, o hoje arquiteto Rodrigo Othake.

Trocou a carreira numa multinacional pelo balcão de uma loja de moda autoral, e os tailleurs por vestidos mais curtos, estampas coloridas, coturnos e até coroa de strass. "Minha Londres é aqui!" Amarrou os cachos loiros em trancinhas que se tornaram dreadlocks.

E cobriu braços, nádegas e pernas com tatuagens de motivos japoneses. A foto do corpo decorado, postada em seu perfil no Facebook, foi censurada. "Acho que foi porque aparecia o bumbum", arrisca, sem constrangimentos.


OS SEM-IDADE

A tendência de chegar aos 50, 60 ou 70 sem sentir o "peso dos anos" nem se identificar com os clichês da terceira idade tem recebido várias etiquetas. Foi apelidada de movimento "ageless" (sem idade, em inglês): pessoas cuja identidade é mais social que cronológica.

"Somos pessoas relevantes de todas as idades, que vivem o tempo presente, sabem o que acontece no mundo, estão em dia com a tecnologia e têm amigos de várias gerações", escreveu a diretora criativa norte-americana Gina Pell ao cunhar outro termo para o grupo: "perennials" (perenes, em inglês). Pegou. 

Uma nova pesquisa do Datafolha traz indícios dessa onda ao apontar que os brasileiros com mais de 60 anos são os mais satisfeitos com sua aparência (68%) e com seu peso (62%). Vão mais a restaurantes e shows e viajam com maior frequência hoje que nove anos atrás. Eles acreditam que sua velhice será melhor que a de seus avós (65%).

Um a cada quatro (26%) segue trabalhando. Ativos e criativos, curiosos e colaborativos, os perennials mantêm certo gosto pelo risco, sem perder o lastro da maturidade, a partir da qual se tornam mentores dos amigos mais novos. Confiantes, aceitam a passagem do tempo e assumem seus efeitos sem muitos disfarces.

ANTIDISFARCE

Neste contexto, não há nada mais antiquado que esconder a idade ou definir alguém apenas a partir dela. "Continuo a ser quem sempre fui, só que, agora, tenho dor no joelho", brinca a artista plástica Mariana Pabst Martins, 58. "Quem mentia a idade era minha avó. E eu não poderia estar mais distante do estereótipo da senhora de coque que fica na cadeira de balanço fazendo tricô."

Ela e o companheiro, Baixo Ribeiro, 54, se dividem entre o trabalho na galeria de arte Choque Cultural, os shows de música onde interagem com os amigos do filho único de 30 anos, e os cuidados com o neto de três anos, que buscam na escola quase todos os dias.

"Sempre fomos curiosos com a cultura de cada época e isso nos tornou mais abertos e adaptáveis às mudanças", diz Ribeiro. "Frequentamos lugares de gente mais jovem e mais velha. Essas trocas são muito interessantes."

Martins também valoriza a relação com outras gerações. "Nunca olho para uma criança ou um adolescente como um pentelho que não sabe de nada. São pessoas que estão no mundo, e tenho interesse em saber o que pensam." Para eles, é a adesão a regras sociais de comportamento que faz as pessoas se sentirem mais velhas.

"É preciso não se prender a padrões e acompanhar o debate atual", avalia Ribeiro, que diz ter encontrado uma forma de desobediência etária na maneira de se vestir. "Homem em geral fica mais sério e sisudo à medida que fica mais velho. Eu, ao contrário, era sério e estou ficando cada vez mais ridículo", ri o galerista. O casal relaciona essa mudança de comportamento ao envelhecimento da geração baby boomer (nascida entre 1946 e 1964), grande responsável pela construção de um imaginário social da juventude e de uma cultura jovem ligada ao consumo.

CABELOS BRANCOS

Recentemente, a moda acordou para as pessoas mais velhas e tirou mulheres e homens maduros da invisibilidade fashion. Neste ano, a atriz Lauren Hutton estrelou uma campanha de lingeries da Calvin Klein aos 73 anos, a decoradora Iris Apfel fechou uma parceria com a M.A.C., de cosméticos, aos 94 anos, e Helen Mirren estampou a capa da revista "Allure" aos 72.

Na ocasião, a atriz criticou o uso do termo "anti-idade", tão comum no universo dos cosméticos. "Nós sabemos que estamos ficando mais velhas. Quero apenas parecer e me sentir tão bem quanto possível", disse. Cabeças brancas estão em mais campanhas, mais capas e mais desfiles. No Brasil, estilistas como Ronaldo Fraga e Raquel Davidowicz (da marca UMA) já havia colocado modelos mais velhas nas passarelas.

Grifes como Reserva e Ellus também levaram perennials para apresentar suas novas coleções. A ceramista e socialite Teresa Fittipaldi fez sua estreia como manequim aos 59 anos no último desfile da estilista Glória Coelho. "Foi muito legal. Primeiro porque, em geral, uma mulher como eu não se identifica com o que vê em revistas ou desfiles: meninas muitos jovens, lindas e magérrimas", admite.
"Segundo porque elogiaram muito os meus cabelos brancos. Cada idade tem sua beleza. E elas não precisam ser comparáveis."

Para ela, deixar de tingir de loiro as madeixas foi um alívio. "Pintar é uma prisão. Cansa demais. Mas, no Brasil, ainda é muito difícil as mulheres assumirem os cabelos brancos. Na Europa e em Nova York é bem mais comum", avalia.
Ao aderir aos fios naturais, Fittipaldi forçou a mãe, já com quase 80 anos, a abandonar as cores "fake". "Não tinha cabimento ela seguir de cabelo castanho com uma filha toda branca."

CARTEIRADA

Na família do músico Valter Toledo, 65, os sinais visuais estão invertidos. "Meus filhos se vestem como se fossem meus pais!", debocha. Quanto foi cantor do grupo Os Originais do Samba, Valtinho Tato, como é conhecido, teve de se enquadrar nas vestimentas tradicionais dos sambistas: calça e paletó de linho, sapato social. "Não aguentei. Não é a minha."

Estudos realizados pela psicóloga Ellen Langer, professora da Universidade Harvard (EUA), sugerem que as pessoas que se enxergam como velhas de fato envelhecem mais rápido e que a maneira de se vestir é um fator determinante nesta equação.

Segundo a pesquisadora, aqueles entrevistados que trabalhavam de uniforme ou que se vestiam de forma semelhante a pessoas mais jovens apresentavam menos doenças associadas ao envelhecimento.

"Acho que envelhece aquele que não vive. E eu me sinto ótimo. Tenho um projeto social com música, canto e jogo meu futebol", diz Toledo.
"Meu time é Cocoon [em referência ao filme em que velhinhos são rejuvenescidos ao banharem-se em águas energizadas por extraterrestres]. A gente corre tanto ou até mais que os moleques."

Com 6 filhos e 12 netos, volta e meia o músico tem de "dar uma carteirada", apresentando um documento com data de nascimento para provar ter direito aos benefícios da terceira idade.

MERCADO

O artista multimeios e publicitário Ricardo Van Steen, 59, tinha certeza que, a esta altura, estaria à beira da aposentadoria. "Sonhei com isso. Mas o mundo mudou e eu provavelmente nunca vou me aposentar", reconhece.

Paradoxalmente, é o trabalho e a busca constante pelo novo que o mantém motivado. "Acho que ainda não acertei uma bola na rede pra valer no meu trabalho autoral. E sigo atrás disso", diz. "Ser compulsivo com trabalho, workaholic, me joga pra frente. A gente se frustra quando parece que o mundo precisa menos de você, e isso envelhece."

Van Steen sempre buscou trabalhar em redes e coletivos, e diz se renovar bastante no contato profissional com os mais jovens. "O que não dá é pra perder o ânimo com a tecnologia. Aí você está ferrado porque isso cria um gap muito grande e muito rápido em relação ao que está acontecendo no mundo."

Ele diz seguir buscando "as páginas dos manuais que ainda estão em branco ou sendo escritas" e acredita que a publicidade tem representado cada vez mais as pessoas mais velhas em atitudes "sem idade".





Empresas como a Amazon e a Netflix já definem o perfil de seus usuários pelo seu gosto, e não sua idade. A pesquisa Datafolha mostra que valores como a tolerância à diversidade, produtividade, coragem estão muito ligados aos mais velhos. Até mesmo o destaque em criatividade, na opinião dos brasileiros, não é exclusividade das novas gerações.
A maior parte das marcas, no entanto, ainda se arma de estereótipos negativos sobre os mais velhos, centrando fogo na geração dos millennials, apesar do potencial financeiro muito maior dos perennials.

As pessoas com mais de 60 anos têm rendimento médio real cerca de 40% maior que o dos millennials, segundo a última carta de conjuntura do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
DE BEM COM A VIDAMais velhos estão mais satisfeitos com sua aparência - Datafolha Velhice


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