segunda-feira, 5 de maio de 2025


05 DE MAIO DE 2025
GPS DA ECONOMIA - Marta Sfredo

Respostas capitais - José Alfredo Graça Lima

Vice-presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), participou da reformulação das regras multilaterais de comércio e da criação da própria Organização Mundial do Comércio (OMC).

"Os EUA não fabricam uma televisão há mais de 50 anos, "

Em quase 50 anos como diplomata, José Alfredo Graça Lima ocupou diversos cargos no Ministério das Relações Exteriores no Brasil e no Exterior. Representou o país em negociações no Mercosul e com a União Europeia e chefiou a representação brasileira na UE, em Bruxelas. Agora, está tão perplexo como boa parte da humanidade com a "truculência unilateral" de Donald Trump. Como bom negociador, acredita nesse poder e vê nas tentativas de acordo uma esperança.

Qual a sua avaliação dos primeiros cem dias do governo Trump, alguma surpresa?

A truculência do unilateralismo. O principal parceiro comercial deixa de lado as suas obrigações multilaterais para ameaçar. A China é o alvo principal, mas também todos os países que exportam para os EUA. Eram um parceiro não apenas confiável, mas de última instância. Todos os países comerciavam com os EUA, o que na verdade era responsável pelo déficit comercial americano, atendendo às necessidades de mercado em expansão. É o que tornava os americanos mais ricos, até porque o déficit comercial era compensado pelas exportações de serviços. Essa lógica era perfeitamente conhecida, mas escapa da compreensão de um presidente populista que fala para operários de indústrias decadentes.

Os recuos dão esperança?

A negociação de acordos bilaterais aponta para um cenário muito menos pessimista do que se previa. Não é uma solução satisfatória, em vista da operacionalidade do sistema multilateral. Até o momento, funciona com base no tratamento de nação mais favorecida, o que poderá deixar de acontecer, com grande prejuízo para o comércio global. Mas é absolutamente impossível determinar, neste momento, quais serão os termos negociados, o que deixa os agentes econômicos incertos. O fato de existir negociação, representando tentativa de resposta ao unilateralismo truculento, não deixa de trazer esperança para um comércio com mais fluidez.

O que pode estar na mesa?

Pode haver casos em que se estabeleçam cotas, com comércio administrado, como está sendo buscado (pelo Brasil) para aço e alumínio. De novo, não é o ideal, mas evita ruptura do comércio. O Brasil é privilegiado no sentido de que uma parte pouco significativa das exportações está integrada a cadeias de valor. Exportamos alimentos, parte de um comércio direto. Os bens perecíveis não devem sofrer barreiras, porque a demanda por alimentos, por produtos agrícolas, é inelástica. Você paga o preço que tiver de pagar. Os consumidores de baixa renda, como sempre, pagam a conta, assim como as indústrias que dependem de insumos e de máquinas a baixo preço.

O Brasil está pronto para aproveitar essa oportunidade?

Vai depender de dois fatores. O primeiro é se vai ter oferta exportável para cobrir as necessidades chinesas, que são grandes. Os chineses já compram cerca de 80% da soja que o Brasil produz. Tenho certeza de que os agricultores não devem perder em qualquer arranjo, e a China é um dos países que está negociando ativamente, embora fique nas entrelinhas. Outro é que os EUA estariam pressionando os países para não importar da China o que a China exportava aos EUA. E muitos produtos chineses continuam sendo objeto de processos antidumping, de medidas compensatórias. Em condições normais, e admito que não estamos em condições normais, o comércio entre o Brasil e a China não vai ser afetado.

O que se pode esperar?

A definição do regime comercial dos EUA é, neste momento, obra de ficção. Mas existe um precedente. Quando as tarifas americanas foram elevadas ao ponto mais alto de sua história, com a lei Smoot-Hawley, em 1930, contribuindo para disseminar e agravar a Grande Depressão, houve mitigação por acordos de reciprocidade bilaterais que os americanos passaram a negociar, inclusive com o Brasil. Mas os acordos tinham tratamento de nação mais favorecida e cláusulas foram aproveitadas depois no capítulo comercial da Carta de Havana, que se tornou o Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) em 1947. Era um embrião de um sistema multilateral mais aberto, com tarifas reduzidas, perspectiva de crescimento do comércio com redução de barreiras, ao menos tarifárias.

Qual a sua tese sobre a meta de Trump?

Não tenho. A julgar pelo discurso, o que Trump quer é reindustrializar os EUA. Mas as indústrias intensivas em mão de obra estão produzindo muito mais e melhor fora dos EUA. Os EUA não fabricam uma televisão há mais de 50 anos, e por boas razões. Os investidores preferem criar cadeias de valor que são benéficas para todo mundo, menos para os desassistidos pela globalização, que não por acaso são os eleitores de Trump.

Trump quer reindustrializar, mas não oferece crédito. Qual a explicação?

Hesito um pouco em usar o termo, sem ofensa nenhuma, mas é um tanto esquizofrênico, mesmo. O presidente pode fazer discursos, mandar recados, fazer ameaças, mas vemos frequentemente o segundo escalão, os secretários de Comércio, do Tesouro, introduzirem certa racionalidade onde está faltando. Trump também não hesita em voltar atrás, em recuar em muitas decisões tomadas.

Há prazo para romper cadeias de valor?

O prazo seria os 90 dias, que se esgota em julho. Se o Brasil se comprometer a reduzir tarifas para o etanol e permitir maior acesso, não seria ruim para a economia. Afetaria o setor, mas para o consumidor seria boa notícia. A indústria manufatureira do Brasil tem baixa produtividade, porque o país importa pouco. Há muita taxação para proteger essas indústrias de uma concorrência que consideram predatória. É preciso reconhecer que o Brasil é um país fechado. Sei que é politicamente improvável reduzir tarifa, mas está na hora de revisar. E essa talvez seja uma oportunidade para que aconteça com um custo político reduzido.

Com a OMC débil, violação às regras tem efeito prático?

Tem, sim. O Gatt continua sendo a constituição do comércio internacional. Pode ser violado, como está sendo, mas existe. A OMC serve como foro de discussões. A ausência do órgão de apelação gera incentivo a medidas unilaterais. Vai à consulta, a panel (espécie de julgamento), tem decisão, mas sem órgão de apelação, o país fica livre para não cumprir. Não quer dizer que o sistema esteja comprometido, ou que a organização tenha se tornado irrelevante. _

GPS DA ECONOMIA

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