
REPORTAGEM
ZH encontrou algumas das pessoas chamadas de refugiadas climáticas e mostra como está o reinício de laços afetivos, as lembranças do que ficou para trás e o que elas esperam do futuro. Estudo aponta que cerca de 1 milhão teve de se deslocar de suas casas, de forma permanente ou temporária
Migrantes da cheia
Esperança de dias melhores e vontade de recomeçar
Em questão de horas, milhares de gaúchos mudaram drasticamente as suas vidas. Em maio do ano passado, muitos foram obrigados, para evitar serem levados pela água que avançava pelas ruas, invadia casas, derrubava grades e portões de fábricas e subia ferozmente, a deixar suas casas.
Um ano depois, os chamados refugiados climáticos recomeçam as suas vidas em novos locais, fugindo da força da natureza e buscando novos horizontes. A reportagem de ZH encontrou algumas dessas pessoas e mostra como está o recomeço em distâncias que chegam a centenas de quilômetros das antigas moradias.
Fernanda Paula Silva teve a casa, comprada meses antes da enxurrada e o comércio, inundados pela força do Jacuí em Eldorado do Sul, na Região Metropolitana. A decisão foi recomeçar em Porto Alegre. O casal Paulo Roberta Silva e Chaiane Nunes dos Santos saíram às pressas, com a água já no tornozelo, para viver em Quintão. Alessandra, que cresceu na região da Ilhas se viu obrigada a deixar a moradia que podia desabar, carregando apenas as lembranças para uma nova vida na zona norte da Capital. _
Uma saída para não voltar mais
Na madrugada de 2 de maio de 2024, Fernanda Paula Silva, 39 anos, e dois filhos, de 13 e cinco anos, saíram às pressas da residência no bairro Centro Novo, em Eldorado do Sul, enquanto a água tomava praticamente por completo a moradia. E o comércio de venda de frango assado de Fernanda, que ficava no bairro Chacará, foi castigado de forma severa pela enxurrada.
Com o pouco que deu para salvar, eles deixaram Eldorado do Sul em direção a Porto Alegre. E nunca mais voltaram. Fernanda conta que a decisão foi baseada no medo de reviver tudo de novo:
- Desde aquela madrugada em que eu fechei a minha casa não voltei mais. Acabei ficando em Porto Alegre por medo mesmo, porque a qualquer chuva que dá, a gente já fica desesperada.
A altura da água chegou a 1,5 metro na residência e atingiu o teto do estabelecimento comercial. Poucas peças e equipamentos puderam ser recuperados do local.
A morada deixada para trás, agora alugada por outra família depois da limpeza, foi entregue à Fernanda meses antes da tragédia climática. O lugar que concretizava a realização de um sonho mal teve tempo de abrigar outras memórias.
- A Caixa me entregou a chave, a casa novinha, recém-financiada, tudo lindo, tudo branquinho. Sabe? As minhas tomadas, as minhas janelas. Não passei um Natal e um Ano-Novo na minha casa - conta Fernanda.
O recomeço na Capital tem sido "a passos de formiguinha" e conta com o suporte de amigos e familiares. O endereço fica no bairro São José, na zona leste da Capital, distante de inundações, e recebe casa e comércio lado a lado.
- Ainda estou começando a existir aqui em Porto Alegre. Sei que, de repente, não vou acessar o centro da cidade, mas não preciso, porque tenho o mercado e a escola dos meus filhos perto. Então, as coisas estão, sim, caminhando para o melhor - celebra a empreendedora, embora relata que sente muita saudade do pôr do sol visto da janela de sua antiga casa em Eldorado do Sul. _
Mudança para um local provisório
Alessandra Lacerda, 25 anos, cresceu na Ilha Grande dos Marinheiros, em Porto Alegre. Percorrendo as ruas vazias, a líder comunitária recorda os jogos de taco e as correrias de quando era criança. A casa, repleta de memórias, se tornou inabitável e com risco de desabamento. A água, além de levar embora os materiais que ela utilizava para vender açaí, arrastou a vontade de voltar a viver na região das Ilhas, apesar do amor que ela demonstra pelo local.
- Por um lado, me parte ter que estar saindo daqui, mas, por outro, não dá para ficar. A ilha não é mais segura por conta da enchente - resume.
Alessandra diz que ainda paga contas de móveis que nem tem mais. O sentimento de abandono carregado pela comunidade fez com que Alessandra decidisse ir embora.
Vivendo provisoriamente em estadia solidária no bairro Vila Farrapos, em Porto Alegre, Alessandra aguarda o processo do Compra Assistida, da Caixa Econômica Federal, para morar em um imóvel escolhido em Alvorada, com o filho de cinco anos.
- Fui para a casa do meu irmão em Eldorado do Sul. A gente não sabia que a enchente ia ser tão grande. De lá, fomos para a Mathias (bairro Mathias Velho, em Canoas), com água no peito. Depois, a gente foi para Guajuviras (em Canoas), na minha irmã. Nisso, fui para Alvorada e depois aluguei na Vila Farrapos - diz Alessandra.
Mesmo trocando de município, Alessandra afirma que não deixará de atuar como líder comunitária para ajudar seus vizinhos e a mãe, que ainda mora no mesmo terreno e também aguarda o processo para adquirir uma nova casa.
- Ela não está aceitando muito bem sair da ilha, mas falei para ela que não tem como ficar, não tem mais posto de saúde. Hoje tem uma carreta com atendimento maravilhoso, mas a gente não sabe até quando - desabafa Alessandra, relatando que, a cada nova chuva, o coração ainda fica aflito pensando na mãe e nos moradores que seguem na ilha. _
O que são refugiados climáticos?
Junto à escalada dos desastres ambientais, popularizou-se expressão para designar os que deixam as suas casas, de forma permanente ou temporária, para escapar da força da natureza. São os refugiados climáticos.
Mas, ao contrário de outros conceitos como migrante, refugiado ou asilado político, não há definição legal no Brasil ou de organismos internacionais sobre refugiados climáticos. O que existe é uma interpretação muito ampla sobre o que se enquadraria neste grupo de pessoas, explica o professor de Relações Internacionais da ESPM-SP, Roberto Uebel.
A falta de definição legal sobre o conceito, diz, resulta em uma série de entraves, seja para a elaboração de políticas públicas, seja para a obtenção de auxílios por parte dos atingidos.
"Isso dificulta a obtenção de auxílio financeiro, por exemplo, ou leva ao caso que vimos de cidadãos sem nenhum documento tendo que lidar com a burocracia", afirma o pesquisador.
Estudo conduzido pelo pesquisador mostrou que mais de 2 milhões de pessoas foram diretamente afetadas pela cheia no Rio Grande do Sul. Metade delas precisou se deslocar de suas casas, de forma permanente ou temporária.
No Litoral, com uma nova vida chegando
Berço montado, enxoval encaminhado, ansiedade e planos pela frente. Completando sete meses de gravidez, a autônoma Chaiane Nunes dos Santos, 34 anos, prepara a chegada de Lorenzo, ao lado do marido, Paulo Roberto Silva, 64 anos. O casal deixou Eldorado do Sul no dia 2 de maio de 2024 e decidiu ficar na casa de praia da família, em Quintão, acompanhados da cadelinha e da gatinha de estimação.
Aposentado, Paulo conta que viveu no município da Região Metropolitana desde 2000 e já havia enfrentado outras inundações, mas nada comparado ao que aconteceu no ano passado, quando os dois saíram já com a água batendo no tornozelo dentro de casa.
- Na de 2024, perdi tudo. Tem roupas aqui que estou usando até hoje que ganhamos de doação. A gente foi levantando tudo, achando que não ia ser tão alto. A água chegou em cima do telhado, quebrou telha, quebrou tudo - lembra Paulo.
Um ano depois, ele conta que é difícil lidar com o psicológico e com a saudade dos filhos do primeiro casamento, que ficaram em Eldorado do Sul. O contato é mantido pelo celular.
- Não consigo dormir direito desde a enchente. Começo a pensar na minha casa lá. A minha filha morando lá. A minha cabeça está sempre voando, não consigo descansar - relata.
Chaiane diz que a chegada do bebê despertou mais insegurança e pavor de ter que lidar com os alagamentos outra vez:
- Não quero voltar para lá, porque tenho medo de pegar mais uma enchente. E se vier mais uma até que venha um dique novo?
Sentado no gramado da frente da nova casa, Paulo comenta o adesivo que fez questão de manter na traseira do carro com a frase "Eu amo Eldorado do Sul".
- Vou uma vez por mês lá rever os amigos e depois retorno. A saudade é muito grande. Vou continuar amando Eldorado. É a minha segunda cidade. Nasci em Porto Alegre, me criei em Viamão, mas hoje eu sou eldoradense de coração - confessa ele, ainda alimentando a esperança de um dia poder retornar ao município pelo qual nutre tanto carinho.
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