sábado, 25 de janeiro de 2020



25 DE JANEIRO DE 2020
DAVID COIMBRA

O segundo prato de massa

Eu não devia ter comido aquele segundo prato de massa. Estávamos jantando no Eataly, eu, a Marcinha e o Bernardo, mais os amigos Grace e Edward, e pedi um tagliatelle al ragu. Oh, como gosto de tagliatelle al ragu! Não diria que é meu prato preferido porque comida é como livros ou música: há muitas possibilidades sublimes, não se pode distinguir apenas uma em detrimento de todas as outras.

No entanto, devo admitir que o tagliatelle al ragu ocupa espaço especial no meu estômago e também no meu coração, como os romances de Truman Capote e as canções de Belchior.

Dizem que o tagliatelle foi inventado por um cozinheiro italiano para o casamento de Lucrécia Borgia com o duque de Ferrara. O cozinheiro teria se inspirado nos lindíssimos cabelos loiros de Lucrécia para criar essa massa deliciosa. O que me faz deduzir que os fios de cabelo de Lucrécia eram grossos, porque, segundo as severas normas gastronômicas italianas, o tagliatelle tem de ter uma espessura de 8 milímetros, não mais, não menos.

Por causa dessa história, cada vez que peço um tagliatelle penso em Lucrécia, e isso torna o prato ainda mais saboroso.

Lucrécia foi uma protagonista de seu tempo. Era filha de ninguém menos do que? o papa! Sim, o papa tinha filhos e amantes. Uma delas, contava-se na Roma de então, a própria Lucrécia.

O papa de que falo foi Alexandre VI, um espanhol que antes se chamava Rodrigo Borgia. Outro de seus filhos, César, também cometia incesto com Lucrécia e era desesperadamente apaixonado por ela. Maquiavel escreveu sua grande obra, O Príncipe, baseado em César Borgia, a quem considerava um ladino governante.

Os Borgias não hesitavam em eliminar incautos que ousassem se atravessar em seu caminho. Para isso se valiam de diversos meios. Um deles, o famoso veneno cantarella, pó branco que Lucrécia guardava dentro da pedra oca de seu anel. Quando o desafeto não estava olhando, ela abria o anel, despejava cantarella em sua taça de vinho e esperava que ele bebesse. O coitado tomava um gole e, antes que pudesse dizer cucamonga, caía se contorcendo em dores excruciantes, vomitando, excretando sangue pelos olhos.

Lucrécia sabia ser má.

Há uma excelente série sobre os Borgias. O título é, bem, Os Borgias. O papa é interpretado por Jeremy Irons, mas quem mais se destaca é um coadjuvante que faz um misterioso, sombrio e crudelíssimo assassino profissional. Assista. Vale a pena.

A história do tagliatelle não é citada no seriado. Pena, porque tagliatelle al ragu é uma espécie de símbolo da Itália. Há brasileiros que acreditam que é o mesmo que massa à bolonhesa, mas vá falar isso na Bolonha para ver a reação deles. Os bolonheses rebaterão que massa à bolonhesa simplesmente não existe!

No jantar a que me referi, três de nós escolhemos esse prato, os três homens. Eu estava com fome e, quando o pedido chegou, pensei que eles poderiam ter servido uma porção mais alentada. Mas, tudo bem, fui em frente, comi com gosto e concentração. Nessas oportunidades, deixo que os outros deitem falação e me dedico à comida. Fiz bem. Estava supimpa.

Porém, quando olhei para o lado, vi que o Bernardo havia deixado quase tudo. Dera umas três ou quatro garfadas e desistira de comer.

- Que foi? - perguntei. - Não gostou?

- Gostei, mas tinha comido pão antes?

Era verdade. O restaurante havia oferecido um couvert com pão italiano e azeite de oliva e burratta, e o Bernardo atacara aquelas preliminares com devoção que se deve ter com as principais. Paciência, não ia forçar o guri a comer. Mas fiquei olhando para aquele prato de tagliatelle al ragu abandonado, o queijo parmesão derretendo sobre o molho vermelho, aromático, sedutor, convidativo. Pensei: é até um pecado deixar toda essa comida aí, esfriando. E resolvi fazer algo que não se faz em restaurantes finos: puxei o prato do Bernardo para mim e mandei ver. Comi tudo! E, ao terminar, senti que havia passado do ponto. Lembrei-me daquele velho ensinamento chinês:

"Jamais te arrependerás de comer pouco!".

Mas era tarde para beber da sabedoria oriental, parecia que eu engolira uma bola de futebol e a culpa, a velha culpa, agora me torturava. "Por quê?", dizia para mim mesmo em silêncio. "Por quê?"

Como tantos temerários de cinco séculos atrás, eu me perdera entre o emaranhado dos cabelos de Lucrécia. E Lucrécia, nós já aprendemos, sabia ser má.

DAVID COIMBRA

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