sábado, 25 de janeiro de 2020


25 DE JANEIRO DE 2020
CARPINEJAR

As ameixas da Martha Rocha


Há de se duvidar do poder da fantasia. Ou, no mínimo, combatê-la. Quando colocamos algo na cabeça, dificilmente substituímos a idealização. A vida pode provar o contrário e seguimos mantendo o desenho intacto do capricho. Negamos a realidade para preservar o desejo.

É o que acontece comigo com a torta Martha Rocha. Esqueço que não gosto dela. Simplesmente a informação desaparece. Eu peço sempre com a volúpia da primeira vez, com o ineditismo da primeira vez.

Não que eu não goste da torta. Eu amo aquela cobertura de chantilly e nozes. É o que me liga ao prazer. Penso somente na cobertura e apanho uma fatia imensa, para me dar conta depois de que não me agrada o recheio de ameixa. Por alguma traquinagem mental, boicoto que ela traz as ameixas pretas amargas, que roubam o meu sabor, que anulam a baba de moça, o suspiro e os dourados fios de ovos.

A esposa não entende o desperdício do doce: por que me servi tanto se não vou comer? Fico encabulado de explicar.

Perco sempre o apetite no meio e o garfo, antes faminto e elétrico, começa a se arrastar, indolente, pelas bordas.

Já não sei se coloco um post-it na carteira: "Não coma Martha Rocha", para me prevenir de mim mesmo.

Esse meu ato falho se chama obsessão, enxergar somente aquilo que se quer e abstrair os defeitos. É a prática psicológica daquela expressão familiar "comer com os olhos".

É o que explica também o motivo de muita gente voltar para relações desgastadas e doentias. Deslembram que sofreram, que houve discussões monstruosas, abuso psicológico, incompatibilidade de temperamentos, e retornam a favor da construção idílica e ingênua do amor, decorrentes dos encontros iniciais, quando o casal não se conhecia de verdade. Apegaram-se somente aos sonhos e às promessas de um romance e abdicaram da dureza cotidiana. Não ajustaram a experiência. Não aprenderam com os erros. Não absorveram os problemas da rotina. Sentem saudade da quimera, da hipótese da imaginação, desprezando o conteúdo pesaroso dos anos juntos.

A reconciliação inexplicável com um parceiro da infelicidade se deve pela aparência cremosa, pela fachada soberana da sobremesa. As ameixas da frustração foram escondidas no inconsciente.

CARPINEJAR

Nenhum comentário: