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sábado, 8 de maio de 2010
09 de maio de 2010 | N° 16330
DAVID COIMBRA
A camisa tingida do Cometa
Por algum motivo, resolvemos colocar no nosso time de futebol de salão o nome de Cometa FC. Cometa, imagina. Com tanto nome. Mas foi escolhido em votação e tudo mais. Maldita democracia.
Como não havia verba para comprar uniforme, pegamos das gavetas de casa nossas camisetas brancas de algodão e levamos para a minha mãe. Cuidadosamente, a mãe pegou as camisetas, distribuiu-as num balde com água e, depois, mergulhou entre elas um saquinho de anis.
Em pouco tempo, as camisetas ficaram tingidas de azul-escuro bem escuro, mais escuro que o azul-escuro do Cruzeiro. Como cada um de nós já tinha calção preto e meião branco, ficou assim o fardamento, uma lindeza.
Também foi a minha mãe quem costurou os números brancos às costas das camisetas e os distintivos no peito. O meu número era o 3, e o distintivo, bem, era um cometa. Uma estrelinha de pano branca com rabo bifurcado como uma língua de cascavel. Ficou tri.
Depois dos clássicos do Cometa, um de nós recolhia os uniformes e levava para casa. A mãe do recolhedor de camisas lavava todas, passava-as e as empilhava direitinho para o jogo seguinte.
Esse envolvimento das mães com nosso futebol era muito generoso, porque, reconheço, nós as fazíamos passar trabalho depois de cada joguinho.
O Ricardinho, por exemplo, ele era pequeno e retaco, tinha a pele morena e os cabelos lisos e pretos. Parecia um indiano sem bigode. Esse Ricardinho era canhoto e, como todo canhoto, meio brabo. Ele tinha um cachorro fox de pelo branco e preto, entroncado como ele e, como ele, brabo.
Bob, chamava-se o cachorro.
Quando o Ricardinho atiçava o Bob em alguém, “pega, Bob!”, o Bob saía correndo e rosnando para morder o coitado, e volta e meia conseguia. O Diana, que morava no mesmo prédio que o Ricardinho, era sua vítima preferida. O Ricardinho não podia ver o Diana que:
– Pega, Bob!
O Bob arrancava latindo, os caninos à mostra, e o Diana corria, gritando desesperado:
– Mãe! Mãe! Socorro, mãe!
Era engraçado. O Diana corria muito, não lembro de o Bob ter conseguido mordê-lo algum dia.
No jogo, o Ricardinho era igualmente agressivo. Jogava na ponta-esquerda, era driblador e chutava forte como um Rivellino.
Um dia nós jogávamos num areão entre dois blocos de edifício e o Ricardinho pegou a bola de voleio e, CAPIMBA!, mandou um bazucaço de revesgueio. A bola saiu zunindo e passou por cima do muro que separava o areão dos prédios. A gente só ouviu um barulho surdo, TÃC!, e em seguida um gemido de dor, inhéééé...
Nos dependuramos no muro e vimos a cena medonha: uma velha senhora rojada ao chão em decúbito dorsal, óculos estilhaçados, olho já inchado feito uma ameixa, desacordada. Provavelmente morta, foi o que pensamos. Saímos todos correndo, cada qual para sua mãe, só as mães poderiam nos salvar daquele homicídio culposo.
Essas coisas viviam acontecendo. Uma tarde eu vinha voltando da aula com a pastinha preta debaixo do braço, calça bordô, que a calça do uniforme era bordô, mais camisa branca, pulôver verde, sapato preto. Vinha caminhando distraído e vi que a turma estava jogando com goleirinha. Manja goleirinha? Pois é. Os guris me viram chegandinho e:
– Falta um! Entraí!
Atirei a pasta para cima e entrei. Foi um jogo duro, disputado lance a lance, com muitas divididas e talicoisa. Corri, me esforcei, dei carrinho e saí de campo como a torcida gosta: com o uniforme sujo e em farrapos. Pena que era uniforme do colégio, não do time. Quando cheguei em casa, minha mãe gemeu, Jesusmariajosé!, e quase desmaiou.
Como disse, as mães sofriam com nosso joguinho. Por isso, me emocionei em especial num Natal quando minha mãe me estendeu uma caixa de papelão do tamanho de uma TV portátil. Abri a caixa e a vi, gordinha e reluzente, gomo branco e gomo preto, gomo branco e gomo preto. Uma bola de couro costurada a mão, oficial, número 5.
Cara! Bola era artigo caríssimo naquele tempo, não era assim comprar uma bola. E minha mãe comprou. Para quê? Para me ver voltando para casa todo sujo e suado, às vezes com a camisa rasgada, às vezes sangrando da briga, que a gente brigava, e todo lanhado e todo estropiado e todo desgrenhado. Mas feliz. Mães são assim. Elas renunciam até a própria paz para ver o filho feliz.
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