terça-feira, 6 de junho de 2023


06 DE JUNHO DE 2023
CARLOS GERBASE

Cosplay de quem?

Nos debates que antecederam a votação do projeto de lei que, entre outras coisas, defende o marco temporal das terras indígenas, alternavam-se grupos a favor e contra essa proposta inconstitucional, que pretende limitar futuras demarcações. Só os territórios ocupados por povos originários em 5 de outubro de 1988 seriam passíveis de demarcação. Desastre garantido, pelo menos por enquanto. Porém, mesmo que o PL490 tenha sido aprovado na Câmara, ainda depende do Senado. 

O mundo olha para o Brasil neste momento. Além da manutenção dos direitos dos indígenas, estão em jogo questões ambientais e de saúde pública. Na mesma edição de ZH que anunciou a aprovação do projeto, estava a notícia de que, a cada cinco peixes consumidos pelas famílias da região amazônica, um tem níveis de mercúrio acima dos limites seguros. De onde veio esse mercúrio, conhecido agente cancerígeno? Todo mundo sabe: boa parte é colocada nos rios pelo garimpo ilegal em terras indígenas.

No embate na Câmara, era fácil distinguir quem lutava contra a aprovação do marco temporal, pois algumas deputadas e autoridades usavam vestes e acessórios que apontam para culturas indígenas, como brincos de penas e cocares. No outro lado, na chamada bancada do agronegócio, todo mundo estava de terno e gravata. Notei apenas um parlamentar, chamado Zé Trovão, usando um chapéu de abas largas para complementar o figurino. Normal: respeitadas as regras do local, cada um e cada uma que se manifeste visualmente como bem entender. A questão não é chapelão versus cocar. É o que eles representam. Como disse Célia Xakriabá, "antes do Brasil da coroa e do chapéu tem o Brasil do cocar".

Minutos antes da votação, um deputado de terno e gravata, cujo nome não lembro, assumiu o microfone para dizer que ele era um indígena de verdade, do grupo Tukano, e que era a favor do projeto, pois ele garantiria trabalho e dignidade para os povos indígenas. Logo depois, referindo-se aos seus opositores, disse que estes estavam fazendo cosplay com suas vestimentas e acessórios. Arrancou algumas risadas e cumprimentos de quem estava à sua volta. 

Fiquei me perguntando: será que ele, um "verdadeiro indígena", não percebe que, historicamente falando, quem faz cosplay é ele próprio? Será que não percebe que, ao defender uma tese que é refutada pela quase totalidade das lideranças indígenas, do Brasil e do mundo, colabora com a extinção de etnias inteiras? Será que tem consciência do que significa a palavra "dignidade"? Será que, num próximo discurso, ele vai pedir emprestado o chapelão do Zé Trovão? Se é pra fazer cosplay, que seja com figurino completo.

CARLOS GERBASE

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