sábado, 17 de junho de 2023


17 DE JUNHO DE 2023
LEANDRO KARNAL

Não! Não me refiro ao ano passado ou aos anteriores marcados por pandemia e desastres políticos. Sou historiador. Tenho mais interesse em certo distanciamento para avaliar uma data histórica.

Olhando com serenidade, amainadas as paixões, vou indicar como ano ruim 1672. Os holandeses chegaram a criar um termo: rampjaar, o ano do desastre. Ainda que haja ambiguidade, tratarei como sinônimos Holanda, Países Baixos, República Holandesa e Províncias Unidas. Adoro os termos flamengo e batavo também. Algum especialista vai apontar como a generalização dos termos é imprecisa. O especialista está certo. Ignore e siga a leitura.

A República Holandesa tinha experimentado antes intensa prosperidade. Em leitura que sempre recomendo para amar um bom texto de história, Simon Schama escreveu O Desconforto da Riqueza (Companhia das Letras). A época de ouro flamenga está ainda presente nos quadros de Vermeer, Hals ou de Rembrandt. Era o apogeu de uma sociedade que disputava bulbos de tulipas em leilões com valores astronômicos. Era uma pequena terra que desenvolveu braços econômicos e militares extensos que atingiam Pernambuco, a Ilha de Manhattan e o atual arquipélago da Indonésia. A Holanda era uma potência em todos os sentidos.

A prosperidade atrai inveja e guerra. Os franceses de Luís XIV fizeram um pacto raro com os ingleses. Pela terra avançaram as tropas do Rei-Sol (com apoio dos bispos-príncipes de Munique e Colônia) e, pelo mar, o bloqueio naval da armada britânica. Para piorar, os suecos aliaram-se às forças anglo-francesas. Era muita força estrangeira abatendo-se sobre o pequeno território batavo.

A longa guerra anterior contra a monarquia espanhola tinha encontrado o povo holandês relativamente unido. O ano de 1672 mostra as cidades dos Países Baixos divididas entre grupos políticos rivais. Os franceses viviam os efeitos positivos das reformas militares do Marquês de Louvois, medidas quase sempre ignoradas pelos livros de história, todavia fundamentais nas guerras do século 17.

Os holandeses criaram a tática militar de inundar áreas. Fortificações, eclusas, canais e outras armadilhas tinham certa eficácia estratégica (hollandsche waterlinie), mas tiveram custos posteriores para a agricultura. A linha de água das Províncias Unidas era como uma quimioterapia forte: atacava o organismo ruim, contudo, sem dúvidas, tinha seus danos sobre o sistema saudável também.

O povo queria bodes expiatórios para as tragédias. Encontrou nos irmãos De Witt (líderes da facção que enfrentava o príncipe de Orange e ajudava a dividir as forças locais). Uma multidão enfurecida (e instigada por orangistas) linchou os dois membros do patriciado holandês em Haia, no verão de 1672. Os corpos dependurados de Johan e Cornelis de Witt foram retratados por Jan de Baen e podem ainda impressionar o observador contemporâneo no célebre Rijksmuseum de Amsterdã. Procure o quadro De Lijken van de Gebroeders De Witt e fique impressionado com o registro (em óleo sobre tela) de um colapso. O século 17 pintou; o 20 fotografou. Dá para fazer um estudo comparativo com as cenas de Mussolini e aliados exibidos em um posto milanês de gasolina, no ocaso do fascismo italiano.

Quando se estudava filosofia da história (que desapareceu dos currículos), falava-se em uma lógica de ascensão e queda dos impérios e de uma busca por uma "moral da história". Pouca gente ainda defende um sentido pedagógico moral do estudo sobre os fatos pretéritos. Quase sempre a busca de um sentido verificável dos fatos ocorridos indica uma preocupação do presente e pouco trata do que podemos ver no "país estrangeiro do passado".

Com os riscos inerentes, indico a regra de que todas as prosperidades passam. As desgraças também não são eternas. Apesar disso, em lugares com estrutura cultural e educacional, as baixas são superadas. As Províncias Unidas sobreviveram ao rampjaar e prosperaram de novo. Os quadros dos museus ilustram o ouro e o sangue do século 17. As tulipas, importadas do Império Turco, estão associadas à paisagem batava - como memória da primeira bolha de consumo do capitalismo moderno. Os holandeses voltaram a pintar muito, com Van Gogh, no 19, e Mondrian, no 20. Após os desastres da invasão nazista, os Países Baixos reencontraram a paz.

A monarquia foi popular com a rainha Beatriz e continua com seu filho Guilherme. A esposa argentina do rei atual conquistou os corações flamengos. A princesa Catarina Amália fará 20 anos, no fim de 2023, e é a primeira na lista de sucessão em uma terra, de novo, rica e próspera. O rampjaar foi resolvido ou dorme na forma de um bulbo de tulipa... Escrevi, comendo um delicioso biscoito chamado stroopwafel. Quando existe educação, a esperança renasce com um pouco de açúcar.

LEANDRO KARNAL

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