08 DE OUTUBRO DE 2019
CARPINEJAR
O sonho de cozinhar para os avós
Perdi os meus avós cedo, antes dos 10 anos. Morrer, para mim, será cozinhar para eles, coisa que nunca pude fazer. Representará o meu primeiro gesto praticado no além, meu ato fundador no paraíso da memória.
Tenho essa gratidão engasgada. Não contei com idade para retribuir os almoços e jantares deliciosos do Interior, que eles me serviram durante as férias escolares. Ainda são as minhas refeições prediletas, inesquecíveis, insubstituíveis: a galinha recheada, a sopa de calandre, as polentas na chapa com queijo, tudo com gosto de fogão a lenha.
Não me esqueço da sensação de me sentir amado, com a manta no pescoço, ouvindo o crepitar da madeira, enquanto aguardava o meu prato. Eles colocavam uma almofada na cadeira para que parecesse adulto e alcançasse as porções no centro da mesa.
Eu não pretendo repetir a degustação das benesses de minha meninice, empobreceria a experiência que guardo no coração, até porque já fui feliz um dia.
Quero oferecer um banquete aos dois, que cada um fique sentado na cabeceira suportando a surpresa.
Abrirei um vinho, organizarei uma colorida entrada de folhas, não deixarei que se levantem por nada, nem para ajudar buscando algo conhecido na cozinha. Agirão como meus convidados especiais, com a única missão de provar o tempero da minha admiração. Prolongarei as etapas da conversa, com direito a licor e sobremesa.
Haverá uma eternidade para pôr os olhos em dia: molharei os meus olhos castanhos no mel dos olhos deles. Nenhuma urgência nos atrapalhará mais. Não teremos mais pressa para morrer. Não sofreremos de cansaço, nem da necessidade de acordar cedo. Nenhuma doença e câncer nos tirará mais de perto.
Acho que assarei um cordeiro com alecrim e ervas finas, menu ensinado pela minha mãe e dedicado aos domingos. Cortarei fatias finas, para derreterem na boca, absolutamente transparentes. Ao levantar o garfo, poderão enxergar a Lua do outro lado. De doce, conceberei uma ambrosia, imitando visualmente as montanhas de neblina de Guaporé (RS) e reproduzindo o cheiro de canela e cravo da mata da serra.
Mostrarei o quanto foram importantes, devido ao colo e paciência dados, para que enfrentasse os dissabores da cidade grande. Eu beijarei as suas testas, salgando a minha boca de saudade.
Contarei histórias da família, lembrando tudo que eles não viveram conosco, vão rir de como os netos e bisnetos cresceram com personalidades diferentes.
Sou tão esperançoso, que não enxergo fim no fim, mas vida ainda a ser vivida, vida ainda a ser agradecida, vida ainda a ser festejada.
Morrer trará a glória de cozinhar finalmente para os meus nonnos.
CARPINEJAR
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