03 DE OUTUBRO DE 2019
O PRAZER DAS PALAVRAS
Este que vos fala
Um sábio provérbio português diz que elogio em boca própria é vitupério. Embora concorde em gênero, número e caso (grau não concorda, mas isso é assunto para outra ocasião), não vejo nada de errado em me gabar quando falam bem do meu trabalho (dos que falam mal, aliás, tenho uma extensa coletânea...). Pois a coluna de hoje responde a dois leitores de fino trato, cujas perguntas, além de interessantes, vieram embrulhadas no papel dourado da gentileza.
A primeira vem de Jorge S., de Porto Alegre; depois de louvar a minha "competente contribuição aos leitores de ZH" (palavras dele), faz um comentário ao emprego da expressão "este que vos escreve", usada por mim um dia desses. Diz ele: "Como o texto é dirigido ao público na segunda pessoa, minha preferência seria "como este que lhes escreve". E conclui, sempre gentil: "É comum assistir o palestrante dizer este que vos fala e não este que lhes fala. Aguardo a fineza do seu retorno esclarecedor".
Caro Jorge: tudo aqui é uma questão de escolha. Deves saber que, no Brasil, optamos livremente por tratar nosso interlocutor por tu ou por você. Ambos representam a 2ª pessoa do discurso, definida, já na antiga Grécia, como "aquele com quem eu falo". O problema é que tu e você, embora representem a mesma pessoa do discurso, utilizam formas de pessoas gramaticais diferentes: tu usa as formas da 2ª, você as da 3ª. "Tu esqueceste teu casaco", mas "Você esqueceu seu casaco"; "Não te obedeço", mas "Não lhe obedeço" - e assim por diante. Ora, se eu me dirigir a vários interlocutores ao mesmo tempo (no plural, portanto), posso tratá- los por vocês ("Este que lhes fala") ou por vós ("Este que vos fala").
É claro que normalmente preferimos optar pela 3ª pessoa, que é muito mais natural - mas nada impede que alguém, por purismo, por cerimônia ou por ironia (como eu fiz), escolha a 2ª. Em ambos os casos, o texto vai se dirigir à 2ª pessoa do discurso, como tu bem dizes; o falante é que vai decidir qual pessoa gramatical vai utilizar.
A segunda vem do José Barrionuevo, nome tão conhecido aqui e alhures que dispensa apresentações. Como não posso melhorar o que já está bom, limito-me a reproduzir verbatim o que ele escreveu: "Bom dia, Moreno. Gosto demais dos teus textos em ZH. Tomo a liberdade de te pedir uma ajuda. Recentemente prestei uma consultoria para o Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada, que é um grande centro de inteligência na fabricação de chips, uma referência na América Latina. A instituição se define como a Ceitec (no feminino), partindo da condição de empresa, imagino. Mas é um centro. Qual é o correto? Meu fraterno abraço e minha admiração".
Caro Barrionuevo, o normal - ou seja, o esperado - é que as pessoas jurídicas (as famosas "pejotas") tenham o seu gênero determinado pelo núcleo que as define: dizemos o IEL porque é um instituto; dizemos o Detran porque é um departamento, mas falamos na Funai porque é uma fundação. Seguindo esse modelo centenário, então, deveríamos ter o Ceitec, por trazer centro no nome.
No entanto, como os caminhos que a língua toma nem sempre estão traçados em linha reta, há várias situações em que o princípio acima não é (ou não pode) ser aplicado. No caso de empresas comerciais, por exemplo, é frequente desconsiderarmos o gênero ou o número do nome para fazermos a concordância com alguma palavra subentendida: no Google, vais encontrar "as (Casas) Pernambucanas abriram novas lojas" lado a lado com "a Pernambucanas está contratando", construção em que o artigo e o verbo no singular indicam que o foco está sendo transferido para empresa.
No caso de uma sigla, em que nem sempre estão bem claras todas as palavras que ela representa, este deslocamento de foco é ainda mais fácil. Todos falam na TAP, indiferentes ao fato de que a razão social por extenso seja Transportes Aéreos Portugueses. Aliás, essa indiferença pode ir até mais longe, ao ponto de ignorar solenemente o núcleo original, como é o caso da Unicef, sigla em que a letra F representa fundo (em Inglês, United Nations Children?s Fund, ou seja, Fundo das Nações Unidas para a Infância), mas ninguém dá a mínima.
Este me parece ser o caso da Ceitec: a julgar pelos textos de seu site, há uma clara intenção de transformar o que era uma simples sigla numa marca de personalidade própria, mais adequada a uma empresa moderna e competitiva. Tu e eu estranhamos este feminino só porque sabemos que dentro da sigla se esconde o substantivo masculino centro; em breve, isso será apagado da memória das gentes e todo o mundo ficará feliz.
CLÁUDIO MORENO
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