terça-feira, 10 de setembro de 2019



10 DE SETEMBRO DE 2019
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Muito sofri

Há 16 anos eu esperava para ler este romance, que acaba de sair em português: Max Havelaar. Seu autor se assinava Multatuli, palavra que alude a um verso de Horácio, o poeta latino - literalmente, "multa tuli" significa "muito sofri". Na vida civil o autor se chamou Edouard Douwes Dekker e publicou, em 1860, o romance com esse título.

Por que 16 anos: porque foi em 2003 que li uma excelente referência a ele, no magnífico livro de Sérgio Paulo Rouanet (sim, o da lei, diplomata aposentado, grande intelectual brasileiro) intitulado Os Dez Amigos de Freud (Cia. das Letras). Neste impressionante estudo, Rouanet tomou uma resposta de Freud a uma enquete que pedia que ele apontasse "10 bons livros". Freud interpretou o pedido como sendo uma lista de 10 livros "amigos": não clássicos, não os 10 maiores, mas "bons", como quem diz "bons amigos". O primeiro autor da lista era justamente Multatuli. (Rouanet, em seu estudo, apresenta os 10, garimpa a presença deles na obra de Freud e comenta isso tudo. Um espetáculo.)

Agora saiu, em ótima edição da Âyiné, em tradução direta do holandês por Daniel Drago, o tal Max Havelaar. Singular é o que ele é: ao abrir suas páginas, lemos um narrador em primeira pessoa, um homem de negócios, "cabeça de planilha", sem alma e pragmático, que considera a ordem do mercado a melhor e mais justa do mundo. Só que ele recebe um pacote com um conjunto de manuscritos de um ex-colega de infância: cartas, peças, narrativas, enfim uma maçaroca de textos. Este homem de negócios então contrata um jovem para dar ordem àquele caos

Aí começa a ser contada a história do personagem-título, que era funcionário do governo holandês na Indonésia e viu ao vivo os horrores da exploração colonial, da corrupção aos maus tratos com os nativos. Max escreve cartas para denunciar, mas não é levado a sério. E nisso tudo, Max é a encarnação literária do autor, que passou por esse processo todo.

O resultado é um livro esquisito, que explora dimensões figurativas e abstratas do relato. Contemporâneo de Moby Dick e mais velho 20 anos que o nosso Memórias Póstumas de Brás Cubas, este Max Havelaar é uma excelente amostra do tanto que pode o romance, esta forma moderna que ainda agora se mostra tão vigorosa.

LUÍS AUGUSTO FISCHER

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