11 DE JUNHO DE 2019
CARPINEJAR
Arrastando os móveis
O parquê da casa da infância e adolescência era todo arranhado. Havia uma expressão mágica que destruía o piso: "Vamos arredar os móveis?".
Abríamos uma clareira no meio da sala para dançar. Os pais saíam para jantar e já ligávamos música alta e improvisávamos uma reunião dançante, que se resumia a coreografias com roupas de adultos e passos combinados entre os quatro irmãos. Formávamos uma escadinha pulante e indisposta a dormir cedo. Nossa encenação preferida costumava ser Saltimbancos, de Chico Buarque. Pegávamos vassoura, rodo e espanador como microfones. De mãos dadas, seguíamos uma roda nos sentidos horário e anti-horário. Alguns caíam no caminho. Acelerávamos a velocidade da ciranda para redobrar as dificuldades. Ninguém chorava: as quedas só aumentavam o volume das risadas.
Au, au, au. Inha in nhó.
Miau, miau, miau. Cocorocó.
O animal é tão bacana
Mas também não é nenhum banana.
Au, au, au. Inha in nhó.
Miau, miau, miau. Cocorocó.
Quando a porca torce o rabo
Pode ser o diabo
E ora vejam só
Au, au, au. Cocorocó.
A decoração vinha a ser uma durante o dia e outra muito diferente com a ausência paterna e materna. O sofá terminava arrastado até o corredor. Levávamos a mesa para outro cômodo. Empurrávamos as cadeiras dali. Queríamos espaço livre para brincar e nos revezar nas vozes. Nada poderia impedir a nossa algazarra. Parecíamos malucos, mas estávamos felizes, num raro momento em que a televisão perdia a sua preferência para o toca-discos.
Havia rigor em nossos jogos cantantes. Nunca poderíamos ser descobertos, para evitar castigos. Em nós, reinava uma cumplicidade da dissimulação.
Controlávamos o horário da volta deles, a partir do rangido do portão (nossa campainha preventiva, antes da chave na porta), para deixar tudo arrumado e correr para debaixo dos lençóis e cobertas, fingindo que dormíamos há mais tempo.
Eu me lembrei dessa encantada fase quando a casa da família foi posta à venda e ficou absolutamente vazia. Deu para perceber claramente o mapa de nossos movimentos no chão, das estantes para o centro da luminária. Ranhuras fundas indicavam onde repousava cada mobiliário, como fitas brancas demarcando uma cena de crime. Nunca tinha parado para ver a nossa herança sem as pernas e pés das poltronas.
O que me leva a concluir que a alegria também deixa cicatrizes.
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