13 DE JUNHO DE 2019
O PRAZER DAS PALAVRAS
Vestibular
A ORIGEM DO NOME do exame prestado por estudantes. O leitor Alexandre Z., de Maringá, é um curioso que acha estranha uma palavra "que todo o mundo usa como muito natural", diz ele. "Por que o nome do exame que os estudantes fazem para entrar na universidade é um vestibular? Não fui além do antigo ginásio, mas, pelo que lembro, isso seria um adjetivo, como familiar, espetacular, exemplar. Não tem um fio solto nessa história, professor?".
Caro Alexandre, vejo que ainda guardas a boa formação da antiga escola. A classificação que propões está correta: vestibular é um adjetivo derivado de vestíbulo, e entra nesse filme como ator coadjuvante: o concurso vestibular é por onde se entra na universidade. Com o tempo, porém, o adjetivo passou a representar o conjunto inteiro e hoje falamos naturalmente em vestibulares como se fossem um tipo especial de prova. Não se trata, porém, como veremos, de um fio solto, como dizes, ou de uma anomalia do idioma, mas sim de um processo bem mais comum do que se pensa.
Esses casos em que o adjetivo "usurpa" o poder e passa a ser usado como representante exclusivo do casal, deixando em silêncio o substantivo que acompanha, são hoje tão numerosos que não causam mais estranheza. Como explica a douta Mary Kato, o adjetivo, por ser usado constantemente ao lado de determinado substantivo, "acaba incorporando em si o sentido desse substantivo, cuja presença física se torna até dispensável".
Quando o jornal fala no salário das domésticas, todos os leitores entendem que se trata das empregadas domésticas; o substantivo empregada pode ser dispensado porque ele fica claramente subentendido. Por esse mesmo processo, podemos usar imóveis para os bens imóveis, ambulantes para os vendedores ambulantes e promissórias para notas promissórias. Os jovens que encheram as ruas do país bradando por diretas queriam - e obtiveram - eleições diretas, e quando alguém defende a formação de uma nova constituinte todos entendem que está implícito o substantivo assembleia.
Muitos desses exemplos têm valor universal, enquanto outros, para funcionar, devem ficar restritos aos falantes que compartilham determinadas experiências ou área de conhecimento. "Comprei uma meia e duas inteiras" só tem sentido para ouvintes que costumam adquirir entradas para o cinema ou outros espetáculos, e o brasileiro médio não vai entender que "ainda não terminei a inicial" refere-se, na linguagem jurídica, a uma petição. Quem não for gaúcho dificilmente vai saber que a letra da música se refere ao mate nos versos "enquanto a chaleira chia, o amargo eu vou cevando" - o que me lembra, nos idos da minha infância, do CTG Mate Amargo, na estrada Rio Grande-Cassino.
Outros podem ser entendidos de várias maneiras, e só o contexto vai definir qual é o substantivo que está oculto. A manchete "Veja a lista dos classificados" pode se referir a candidatos de um concurso, a participantes de uma competição ou a pequenos anúncios de compra e venda; uma frase como "Aumentou a procura por conversíveis" vai ser entendida diferentemente por um vendedor de automóveis ou por um corretor da Bolsa de Valores.
Agora, se queres uma nota realmente exótica, deves voltar os olhos para vestibulando, essa sim uma formação particularíssima, que entra de penetra numa pacata festa caseira. Como herança do Latim, nosso idioma pode, a partir de verbos da 1ª conjugação (os terminados em -AR, lembra?), formar substantivos com o acréscimo do sufixo -ando, que aqui significa "aquele que vai ou deve ser". O formando é o que vai se formar; o doutorando é aquele que vai se formar; o alimentando é aquele que se deve alimentar - e assim por diante.
Ora, tomando vestibular como se fosse uma base verbal, criou-se, à moda galega, o vestibulando (que decididamente não é aquele que vai se vestibular...). Ora, como se diz lá fora, depois que abriu a porteira... E não deu outra: lá já vêm apontando no alto da coxilha o odontolando, o engenheirando e quiçá outras combinações que ainda vão aparecer. Podemos não gostar, mas elas já nasceram, e as palavras, assim como os seres humanos, não precisam ser perfeitas para ter direito à vida.
Cláudio Moreno, escritor e professor, escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
CLÁUDIO MORENO
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