29 DE JUNHO DE 2019
J.J. CAMARGO
A INOCÊNCIA QUE PERDEMOS
AS MANIFESTAÇÕES ESPONTÂNEAS DAS CRIANÇAS INESPERADAMENTE CONFRONTADAS COM A DOENÇA
Claro que a vida nos ensina a sermos mais sábios, mas é discutível que este progresso compense integralmente o tamanho da perda que resulta da morte gradual da inocência. É uma pena que aquela pureza ingênua tenha mesmo que ficar confinada a esta fase da vida, e que a inocência seja triturada pelos anos depois que descobrimos que a sinceridade absoluta é incompatível com as relações civilizadas e que alguma hipocrisia é indispensável no convívio social.
Mas voltemos à infância, quando ainda não sabemos disso. Se os pais se deslumbram com as façanhas dos filhos, que ao descobrirem a palavra produzem pérolas diárias, é fácil imaginar o que ouvem os pediatras que são os privilegiados assistentes das manifestações mais espontâneas e criativas desses seres humanos em formação, inesperadamente confrontados com uma realidade nova, injusta e assustadora: a doença.
O Felipe é o primeiro filho de um casal jovem que levou para o hospital a retaguarda poderosa de um quarteto de avós de primeira viagem. Quando cheguei para a visita pré-operatória, o Felipe, com seus cinco aninhos, parecia o mais tranquilo do pelotão, uma espécie de homenzinho precoce, rodeado por adultos inseguros e alarmados, todos com o choro engatilhado. Menos ele.
A mãe se antecipou explicando o que este estranho estava fazendo ali. Depois que ela anunciou que "este tio é quem vai cuidar do teu dodói", ele largou uma miniatura vermelha da Ferrari e me encarou com uma carinha de "diga lá".
Tendo ouvido a descrição do que ia acontecer, numa linguagem cuja compreensão ele confirmava, de quando em quando, com uma sacudida de cabeça, ele seguia me encarando com seus grandes olhos acinzentados, e então fez a pergunta mais inesperada:
- E você sabe fazer tudo isto?
Só uma criança para reunir numa única frase esta mistura tão rica de curiosidade e admiração.
Já o convívio com Marcelinho começou mais complicado, porque a situação em que foi trazido para uma cirurgia de urgência com infecção grave de pleura transferiu nossa primeira conversa para o segundo dia de internação. Enquanto esperava que o analgésico desmanchasse a carinha de dor, tentei uma aproximação que não engrenava. Querendo forçar um vínculo, contei que eu tinha um netinho da idade dele, ao que prontamente respondeu:
- Pois saiba que o meu avô é muito mais bonito que você!
O que dá mais encanto a essa encantadora etapa da vida é a criatividade, ainda mais quando utilizada instintivamente, em nome da sobrevivência.
Um colega médico, levemente distraído, veio do Vale do Sinos para um jogo no Olímpico acompanhado do filhote de cinco anos. Na empolgação da partida, incluindo a reclamação pelo pênalti não marcado, percebeu, de repente, que a cria já não estava. Sem saber o que fazer, completamente aturdido, foi acalmado pelo alto-falante do estádio:
- Temos aqui na cabine da Rádio Gaúcha um menino muito loiro, que quando perguntamos o nome, ele disse que é Dudu, que o pai se chama Doutor, e a casa dele é em outra cidade. Então, Doutor, fique tranquilo, ele está aqui com a gente!
Uma história maravilhosa, atribuída a Gabriel García Márquez, relata a aventura de um menino de seis anos que passeava com mãe numa grande feira de rua, em Bogotá, quando perdeu o contato com ela, e na tentativa de facilitar a busca, interpelou um velhinho que picava fumo, com o que lhe pareceu uma descrição útil:
- O senhor por acaso não viu uma senhora de casaco azul e sem um menino assim como eu?
J.J. CAMARGO
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