08 DE JUNHO DE 2019
INFORME ESPECIAL
O HERÓI INVISÍVEL E ESQUECIDO DESSA CENA
O manifestante que parou em frente ao tanque não é o personagem mais intrigante dessa imagem - símbolo da resistência à ditadura chinesa durante os protestos na Praça Tiananmen de Beijing, em 5 de junho de 1989.
Durante a semana, quando os 30 anos do fato foram lembrados, a cena emergiu dos arquivos analógicos e digitais para ganhar vida novamente.
O homem que enfrentou os blindados nunca teve a sua identidade confirmada. Não se sabe também o que aconteceu com ele logo depois daquele dia. Recebeu os apelidos de "manifestante solitário" e "homem do tanque".
Cada vez que revejo o vídeo, quem me fascina é um outro personagem: o motorista do primeiro blindado da coluna que avançava pela praça. Me pergunto o que teria acontecido com ele se apenas tivesse seguido em frente. Talvez até recebesse uma condecoração pelo estrito cumprimento do dever.
Corajoso é também o homem que tem essa força descomunal ao seu dispor e sinal verde para usá-la, mas decide frear e desviar diante de um semelhante. Foi um gigantesco ato de heroísmo, desprezado pela narrativa míope para a grandeza plena daquele instante. O momento é carregado de uma humanidade extrema, em ambos os gestos - o de antepor o corpo ao blindado e o de deter o avanço dele, como reação.
Também o soldado que conteve as toneladas de aço foi forte. Talvez nunca receba o reconhecimento que merece porque, nesse caso, a História é contada pelos vencidos.
Uma história com dois personagens. Um homem e um tanque? Não. Dois homens. Um deles invisível, mas tão admirável quanto o que ficou famoso.
TULIO MILMAN
Um comentário:
Caro Túlio,
Muito a propósito tua coluna na ZH de hoje, “o herói invisível e esquecido desta cena”, por ocasião dos 30 anos do desfecho dos protestos de maio de 1989 da Praça Tian’anmen, ocorrido na noite de 3 para 4 de junho. O breve filme do jovem que barra uma coluna de tanques é icônico, impressiona. O herói invisível seria o motorista do blindado. Gostaria de oferecer dois contrapontos.
O primeiro é que certamente o motorista do blindado recebeu ordem de não atropelar o jovem protestante, até porque as autoridades sabiam que estavam sendo filmadas. Mikhail Gorbachev estava em Beijing para um encontro histórico com Deng Xiaoping, a imprensa internacional estava presente. Uma visita à Praça com ele foi suspensa pelos incidentes. O soldado motorista obedeceu ordem, como qualquer soldado.
O segundo é que a expressão “ditadura chinesa” não é adequada. Nenhum sinólogo ou historiador a usa. Recomendo “regime chinês”. A China com certeza não é uma democracia liberal, mas também não é uma ditadura. Após a morte de Mao, em 1976, promulgou-se uma nova Constituição, em 1982, que estabelece eleições a cada cinco anos. Todos os cargos dos poderes públicos são conquistados por eleições, diretas e indiretas, com direito a uma única reeleição (exceto para o presidente), inclusive do judiciário, e isto tem sido obedecido até hoje. Sendo uma Constituição comunista, há obediência a princípios socialistas, por isso a China não é uma democracia liberal.
Todos os sinólogos escrevem muitas páginas a esse acontecimento, devido à complexidade dos fatos que levaram o governo chinês a evacuar a Praça à força. Henry Kissinger, em seu “Sobre a China” (Objetiva, 2011), dedica um capítulo inteiro a ele: “Tian’anmen” (395 a 423). Em meu “Breve Introdução à História da China” (Sulina, 2015) discuto causas e consequências desse trágico incidente (174 a 181).
Um abraço,
Carlos Pinent
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