04 DE JUNHO DE 2019
DAVID COIMBRA
Aos pés da cama, minha irmã
De repente me surgiu, dobrando alguma esquina escura da memória, uma cena que havia esquecido.
Essa cena aconteceu durante o período de recuperação da cirurgia a que fui submetido seis anos atrás, para retirada de um rim. Era o primeiro dia depois da operação, o pior dos dias. Estava meio dopado pelos poderosos analgésicos que eles dão para a gente nessas situações, mas, ainda assim, sentia muita dor. Muita dor.
Comigo estava a minha irmã Silvia, mas não conseguia conversar com ela, não conseguiria conversar com ninguém, só conseguia sentir dor. Via a consternação em seu rosto e deduzi que a minha aparência devia ser assustadora. Mas não me importei. Quando você está internado num hospital, toda a vaidade se acaba. Você só quer ficar bom e sair dali.
Então, minha irmã fez algo, e foi disso que lembrei agora: ela começou a massagear meus pés.
Naquele momento, talvez também devido ao efeito da morfina, comecei a ver flashes do passado. Eu e minha irmã ainda pequenos, brincando no pátio da nossa casa, no Parque Minuano. Nós tínhamos um cachorrinho, o Banzé, que estava sempre saltitando a nossa volta. A rua era calma, nunca passava carro algum. Por isso, a mãe não se preocupava quando saíamos para a calçada, para o terreno baldio que havia ao lado, para o jardim dos vizinhos da casa em frente. O Banzé ia conosco, bem faceiro. Um dia, ele escapuliu de nossas mãos e cruzou o leito da rua exatamente no instante em que um carro solitário passava. Morreu na hora.
Eu e minha irmã compartilhamos a dor da perda do bichinho. Tivemos outros, claro. Ela adotou um gato covarde, que corria até de barata, e, a despeito disso, colocou-lhe o nome de Tigre. Mas do que mais gostamos foi, imagine, uma codorna, a Matilde.
Passamos a infância juntos, eu e minha irmã. Às vezes se divertindo, às vezes brigando, quase sempre rindo. Quando penso em nós, nós estamos rindo. Depois, passada a adolescência, ela saía comigo e meus amigos, nos fins de semana. Eram sete, oito guris e uma guria.
A vida tem significado quando outras pessoas acompanham a sua história, sabem de você, torcem por você. Minha irmã é uma de minhas testemunhas oculares mais próximas. E eu dela.
E, naquele dia difícil, lá estava ela, aos pés da cama em que eu sofria, com meus pés entre as mãos, massageando-me com suavidade. Foi um gesto simples, mas não inconsequente. Porque, se a dor não diminuiu, aumentou o ânimo. Cheguei a recordar, com ironia meio amarga, os versos de Álvares de Azevedo:
"Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã".
Achei aquilo engraçado, mas suponho que não ri. Apenas pensei: não vou morrer amanhã. Por algum motivo, a presença da minha irmã me deu essa certeza.
Havia esquecido disso, e agora algo que vi ou uma música que ouvi, sei lá, algo me fez lembrar. Uma massagem nos pés. Um carinho. Um movimento de atenção de uma pessoa em relação a outra, e tudo se ilumina. Nós podemos tornar o mundo melhor. Basta nos tratarmos como irmãos.
DAVID COIMBRA
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