03
de maio de 2012 | N° 17058
L.
F. VERISSIMO
Os
resistentes
Não
sucumbi ao telefone celular. Não tenho e nunca terei um telefone celular.
Quando preciso usar um, uso o da minha mulher. Mas segurando-o como se fosse um
grande inseto, possivelmente venenoso, desconhecido da minha tribo.
Eu
não saberia escolher a musiquinha que o identifica. Aquela que, quando toca, a
pessoa diz “É o meu!”, e passa a procurá-lo freneticamente, depois o coloca no
ouvido, diz “alô” várias vezes, aperta botões errados, desiste e desliga, para
repetir toda a função quando a musiquinha toca outra vez.
Não
sei, a gente escolhe a musiquinha quando compra o celular? – Tem aí um
Beethoven? – Não. Mas temos as quatro estações do Vivaldi. – Manda a primavera.
Porque
a musiquinha do seu celular também identifica você. Há uma enorme diferença
entre uma pessoa cujo celular toca, digamos, Takefive e uma cujo celular toca
Wagner. Você muitas vezes só sabe com quem realmente está quando ouve o seu
celular tocar, e o som do seu celular diz mais a seu respeito do que você
imagina.
Se
bem que, na minha experiência, a maioria das pessoas escolhe músicas galopantes
– como a introdução da Cavalleria Rusticana ou a ouverture do Guilherme Tell –
apenas para já colocá-la no adequado espírito de urgência, ou pânico
controlado, que o celular exige.
Sei
que alguns celulares ronronam e vibram, discretamente, em vez de desandarem a
chamar seus donos com música. Infelizmente, os donos nem sempre mostram a mesma
discrição.
Não
é raro você ser obrigado a ouvir alguém tratando de detalhes da sua intimidade
ou dos furúnculos da tia Djalmira a céu aberto, por assim dizer. É como o que
nos fazem os fumantes, só que, em vez de nosso espaço aéreo ser invadido por
fumaça indesejada, é invadido pela vida alheia. Que também pode ser tóxica.
Não
dá para negar que o celular é útil, mas no caso a própria utilidade é
angustiante. O celular reduziu as pessoas a apenas extremos opostos de uma
conexão, pontos soltos no ar, sem contato com o chão.
Onde
você se encontra tornou-se irrelevante, o que significa que em breve ninguém
mais vai se encontrar. E a palavra “incomunicável” perdeu o sentido. Estar
longe de qualquer telefone não é mais um sonho realizável de sossego e
privacidade – o telefone foi atrás.
Não
tenho a menor ideia de como funciona o besouro maldito. E chega um momento em
que cada nova perplexidade com ele torna-se uma ofensa pessoal, ainda mais para
quem ainda não entendeu bem como funciona torneira.
Ouvi
dizer que o celular destrói o cérebro aos poucos. Nos vejo – os que não
sucumbiram, os últimos resistentes – como os únicos sãos num mundo imbecilizado
pelo micro-ondas de ouvido, com os quais as pessoas trocarão grunhidos
pré-históricos, incapazes de um raciocínio ou de uma frase completa, mas ainda
conectados. Seremos poucos, mas nos manteremos unidos, e trocaremos
informações. Usando sinais de fumaça.
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