09 DE MAIO DE 2018
PEDRO GONZAGA
O MÉTODO
O método estava apoiado à estante, com aquela paciência silenciosa das coisas que esperam. Sempre tive dificuldade em ler partituras, mas, depois de anos, eu sabia aquelas escalas de cor. Suspeito que minha irmã forçosamente também as soubesse, tentando sestear enquanto o saxofone reverberava pela casa.
Quando anos mais tarde ela foi morar na Europa, todos creditaram seu movimento à ausência de oportunidades no Brasil. Reforcei essa interpretação, mas, no fundo, custava-me tirar de sua escolha aquelas saxofonadas vespertinas. Não que eu tocasse mal, ou ao menos não tão mal para que não pudesse viver disso, ocorre que mesmo o mais belo instrumento termina por se tornar um suplício em bases diárias. Escalas, notas longas, exercícios de superagudos. É ilusão pensar que a prática de um músico consiste em tocar melodias agradáveis. E nem quero falar do constante martelar do metrônomo.
O método estava apoiado à estante na antiga sala de jantar - convertida em sala de estudo, malgrado o latir dos cachorros da vizinhança - e eu estava a postos. Depois de alguns anos de carreira, e de um relativo sucesso, os shows, no entanto, começavam a sumir. À perspectiva dos custos da vida adulta, as escalas à minha frente não ofereciam respostas promissoras, murmuravam antes um pedido de fibra que eu talvez não tivesse.
Não se faz um músico com três horas diárias, nem com caprichos ou restrições de tocar em formaturas, casamentos e dias festivos no shopping, nem com apenas duas datas marcadas para o próximo mês. Tentei calá-las ajustando a palheta na boquilha, preparando os dedos, mas a acusação era justa e clara. Eu não era um compositor, um arranjador, sequer um solista. Em outras palavras, ali, pela primeira vez, eu percebia que o futuro não era o campo infinito das possibilidades, mas a terra árida das restrições, e descobria, envelhecido, a diferença capital entre perder e desistir.
Perder é um evento pontual da disputa, desistir é negar, de antemão, qualquer contenda, uma forma precoce de aposentadoria. Quem sabe, por isso, seja tão difícil abandonar as coisas a que nos dedicamos tanto, mesmo que assim nos oriente a razão. Porque pode haver glória na derrota, mas a desistência costuma nos parecer um ato de legitimada covardia.
O método estava apoiado à estante na hora em que desisti. Eu ainda tocaria por alguns anos, teria de encontrar outro modo de ganhar a vida, mas reconheço agora, da distância, aquela tarde como um momento libertador. Dizem que os covardes sobrevivem, sem muita dignidade, mas desistir também pode abrir espaço para novas coragens, pelas quais se queira viver e morrer.
Não sei o que os anos fizeram com aquele método. Sei um pouco do que fizeram comigo. Continuo perdendo mais do que ganhando, nesta outra arte construída silenciosamente.
Mas aqui, para mim, é sempre uma pequena vitória chegar ao ponto final.
PEDRO GONZAGA
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