quarta-feira, 2 de maio de 2018


02 DE MAIO DE 2018
DAVID COIMBRA

Com nosso buggy na Bahia


Fui fazer faxina na gaveta e descobri uma moeda de Kuala Lumpur. Estive lá em 2002, na Copa do Mundo. Devo guardá-la? Acho que fiquei com ela todo esse tempo na esperança de mostrar a alguém e esse alguém se admirar:

- Oh! Uma moeda de Kuala Lumpur!

É mesmo admirável isso, uma moeda de Kuala Lumpur, só que nunca a mostrei para ninguém e até havia esquecido que a tinha. Se guardá-la outra vez, outra vez esquecerei dela no fundo da gaveta. Então, nada disso. Lixo para você, moeda de Kuala Lumpur!

É sempre uma dor limpar gavetas. Se coloquei todos aqueles objetos ali é porque julguei que poderiam ser importantes algum dia. O certo seria continuar com eles. Vá que precise. Há reportagens interessantíssimas que separei para ler depois, quando tivesse mais tempo. Nunca foram lidas e, sei, nunca serão. Há contratos que parecem conter cláusulas graves, separei-os na gaveta para analisá-los com mais critério. Há antigos telefones celulares, que podem ter imagens e mensagens antigas.

E, de repente, puxei de lá um envelope e o envelope vomitou uma velha foto. Lá estávamos eu, o Serginho Villar e o Leonardo Oliveira a bordo de um buggy, à beira de uma praia. Sei exatamente o ano em que a foto foi tirada, 1999, porque chamávamos o buggy de "Bug do Milênio". É que se pensava que, quando o ano virasse dos mil e novecentos para os dois mil, os computadores não entenderiam a nova data e entrariam em colapso. O mundo ficaria inteiramente desconectado.

Eu, o Leo e o Serginho não parecíamos preocupados com essa ameaça terrível. Ao contrário, estávamos na Bahia, em Porto Seguro, e passávamos os dias tomando sol e cerveja. Durante uma tarde em que não havia sol, e sim chuva, bebemos mais cerveja do que o usual, enquanto compúnhamos uma linda canção, que, tempos depois, viraria um clássico interno da turma. Aos copos tantos, o garçom veio da cozinha e informou, com a cadência melódica típica dos baianos, que a cerveja havia acabado.

- Agora só tem "di menor" - completou. - Busco "di menor"?

"Di menor"? Com 1 milhão de litros de azeite de dendê, que cerveja seria aquela?

Mandamos trazer.

Ele trouxe uma long neck.

Nos finais de tarde, nós trocávamos a cerveja pelo "capeta", aquela beberagem feita com leite condensado e outros ingredientes fortes e misteriosos. E, durante as noites, repúnhamos as forças com um denso bobó de camarão. Rodamos muito com nosso Bug, fomos até um lugar em que dava para ver o Monte Pascoal, o primeiro avistado pelos portugueses da esquadra de Cabral. Fomos, também, ao Arraial d?Ajuda. Lá ficamos olhando o mar durante horas e era tudo tão calmo e profundo, que sentimos uma indolência boa e parece que um de nós disse algo inteligente sobre a vida. Foram dias de brisa morna e tempo vagaroso, em que nada aparentava ser grave. "Que fim de século!", exclamávamos às vezes, sem razão nenhuma, e ríamos disso.

Que fim de século... Tínhamos, os três, namoradas ou noivas ou esposas, sei lá, mas fomos a essa viagem sozinhos. Ano que vem fará 20 anos da nossa suave aventura. Já combinei com o Serginho e o Leo de repeti-la. Vamos convocar mais alguns parceiros e é possível que consigamos preencher outros dois ou três buggys.

O mundo não entrou em colapso naquela época, mas, de lá para cá, mudou bastante. Como mudou! Tornou-se mais sério, mais grave e mais duro. Nós também mudamos, mas ainda podemos nos reunir e passar algumas tardes juntos, conversando sobre amenidades, não podemos? Talvez diminuindo o número de cervejas, talvez aumentando as horas de sono, mas mantendo a harmonia dos dias. Já nos vejo sentindo a preguiça que vem do mar que recebeu Cabral, já adianto que um de nós dirá alguma coisa muito filosófica, muito sábia e muito relevante, e já sei que a esqueceremos nos próximos 20 anos. Não importa. A mente esquece, o mundo muda e as velhas amizades seguem. Mornas, suaves e profundas, como o mar.

DAVID COIMBRA

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