quinta-feira, 1 de junho de 2023

Os silêncios contidos em uma relação

Marido e mulher se comunicavam fazendo amor

Milly Lacombe

Marcos tinha saído da casa dos pais fazia quase três anos. 
Formado em sociologia, doutorado concluído, foi morar sozinho assim que conseguiu passar em um concurso para se tornar professor universitário.

Filho único e muito apegado à mãe, visitava com frequência a casa que chamou de lar por mais de 30 anos. Ao dar início ao ciclo de visitações, notou o que nunca tinha notado enquanto passava tão apressadamente pelo cotidiano da casa: os pais quase não se falavam.



Casal de idosos com mãos unidas, símbolo de cumplicidade - Sabine van Erp/Pixabay

Acordavam num mesmo horário, o pai colocava a mesa, a mãe passava o café, em seguida o pai saía para comprar o pãozinho (três quando Marcos estava, dois quando ele não estava), voltava, sentavam-se à mesa, ela o servia de café, ele cortava o pão ao meio com a faca e colocava no prato dela, revezavam-se com a manteiga, ele a servia de suco, comiam sem trocar uma palavra.

Aposentados, ficavam bastante tempo juntos dentro de casa. Ele, pedreiro e ela, trabalhadora doméstica. O pai encontrava mil coisas para consertar, canos para reparar, paredes para pintar. A mãe gastava horas na máquina de costura arrumando peças de roupas de amigas do bairro, que a pagavam com bolos, cervejinhas e cafés.

À noite, a mãe cozinhava, o pai lavava a louça e as palavras eram sempre raras.

Marcos começou a achar estranho, quase constrangedor, aquele relacionamento, mas nunca disse nada. Incomodado com tanto silêncio, diminuiu as visitas e passou a ir em domingos alternados.

Até o dia em que o pai de Marcos morreu de infarto, aos 77 anos.

Marcos lembra de pensar que a mãe não ficaria tão triste com a perda porque, afinal, eles quase não se falavam mesmo. Mas logo viu que estava errado: sua mãe ficou dilacerada. Marcos foi morar com ela por um tempo esperando que o luto cumprisse sua jornada.

Quando sua mãe estava menos devastada, numa noite em que Marcos chegou mais cedo em casa, teve coragem de tocar no assunto que o incomodava.

"Por que você e o papai mal se falavam?", quis saber.

"Como assim", ela devolveu. "Seu pai e eu nos comunicávamos perfeitamente", a mãe completou. Marcos achou que a mãe tinha entrado em negação e insistiu: "eu não escutava vocês trocarem uma palavra".

A mãe, que estava colocando a mesa, nessa hora parou, puxou uma cadeira e se sentou. "Marcos, meu filho, você acha que palavras são as únicas formas de comunicação? Deixa eu te contar umas coisas então. Seu pai e eu nos comunicávamos fazendo amor, por exemplo."

"Mãe!"

"Marcos, deixa de ser bobo. Sou mulher antes de ser mãe. Você acha que veio ao mundo como? Mas se te alivia, esquece esse negócio de sexo como mostram na TV e no cinema. Isso não é fazer amor. Eu tô falando de deitar junto, de beijar outro corpo, de ter intimidade com outro corpo, de se misturar a outro corpo. A gente se comunicava com os olhos, com as mãos, com o canto da boca. 

Passar horas ao lado de outra pessoa sem achar que precisa falar qualquer coisa é uma forma de comunicar amor, intimidade, afeto. Ele foi meu parceiro, meu cúmplice, meu sócio na imensidão do silêncio da vida. Quando ele morreu, levou uma parte de mim. A gente se refaz, a vida segue, mas a dor não diminui; ela só passa a fazer parte da gente. Eu sinto falta de ficar em silêncio ao lado dele, de dançar com ele na sala quando estávamos sozinhos. O que você percebeu como silêncio era apenas amor, meu filho."

Quando a mãe terminou de falar, Marcos estendeu sua mão sobre a mesa e alcançou a mão dela. Olhando dentro dos olhos da mãe, agradeceu. Comeram sem dizer nada. Naquela noite, ao se deitar, Marcos finalmente conseguiu chorar a morte do pai.

Nenhum comentário: