quinta-feira, 5 de setembro de 2019



O PRAZER DAS PALAVRAS

Gêneros


Hoje a palavra está com o leitor Rafael P.: "Professor, eis minha questão: qual é o motivo de dizermos "em Portugal", assim como dizemos "em Israel", sem a necessidade de um artigo definido, formando no/na, como se faz com praticamente (senão todos) os outros países? No Brasil, na Argentina, na Espanha, na Bolívia, na China, nos EUA, no México, no Reino Unido, etc. Tem algo a ver com o a letra L no final do nome destes dois singulares países?"

Caro Rafael: não podemos considerar Portugal ou Israel como casos isolados; a tua afirmação - "como se faz praticamente (senão todos) os outros países" - não corresponde à realidade. O uso de artigo definido antes dos nomes de países, em nosso idioma, não é regular como uma plantação de eucaliptos por reflorestamento, mas espontâneo e desorganizado como a nossa mata nativa. 

Os critérios que atuam aqui são insondáveis: há países masculinos e países femininos, assim como há países com artigo e países sem artigo - e não foram os gramáticos que decidiram aqui quem é quem, porque a eles só cabe a função de descrever e tentar entender as leis que regem subterraneamente a nossa língua.

Há países que vêm acompanhados de artigo (o Brasil, o Uruguai, o Chile, a Holanda, a Itália, por exemplo) e outros que o dispensam (Portugal, Cuba, Mônaco, entre outros). Essa distinção é facilmente verificável com o auxílio de uma preposição: ele morou no Brasil, no Uruguai, na Argentina, mas em Cuba, em Portugal, em Israel. Aqui reside, aliás, uma das dificuldades que tornam complexo o emprego correto do acento de crase: em "Fomos à França, a Cuba, à Nigéria e a Angola", o A não é acentuado antes de Cuba e Angola exatamente porque ali não está presente o artigo, o qual, como bem sabes, é um dos ingredientes imprescindíveis para que ocorra a crase. 

Lembro também que existem, inclusive, algumas diferenças de uso dentro do próprio Português: enquanto no Brasil dizemos a África, na África, da África, em Portugal se diz em África, de África.
Esta mesma imprevisibilidade pode ser vista na atribuição do gênero aos países. Alguns são considerados masculinos (Egito, Portugal, Canadá, Japão, etc. - basicamente, todos os que não terminarem em A átono) e outros são considerados femininos, como Itália, França, Cuba, Bolívia, etc.

É um processo normal de nosso idioma: todos os substantivos são classificados dentro de um dos dois gêneros existentes (o Português, diferentemente do Latim, não tem mais o gênero neutro).
Os que correspondem a seres sexuados (macaco, cantor, mestre, leão) geralmente apresentam uma forma masculina e uma feminina; nesses casos, o gênero combina biologicamente com o sexo. 

O gênero de todos os demais substantivos, contudo, é arbitrário: eles se distribuem entre masculinos e femininos segundo critérios imponderáveis. Como apontou Jorge Luiz Borges, nada explica - nem o significado, nem o tamanho, nem o seu valor simbólico - por que espada é feminina e alfinete é masculino. Se compararmos os pares teste e peste, dia e pia, pau e nau, nariz e cicatriz, podemos ver que nada existe nesses vocábulos que justifique sua diferença de gênero.

Uns são femininos e outros são masculinos simplesmente porque assim se fixaram historicamente no nosso léxico. Quem frequenta os autores clássicos vai encontrar vários exemplos de gêneros que mudaram com o tempo. Como já tive a oportunidade de mencionar em uma coluna muito antiga, Gil Vicente ainda pergunta "que planeta é aquela", João de Barros descreve uma cometa e Vieira usa tanto o tribo quanto a tribo. Para Francisco Manuel de Melo, o baralho é, na verdade, a baralha, e o doce Bernardes põe na cabeça de Cristo uma "coroa de espinhas". 

Pouco a pouco, porém, o mesmo plebiscito dos séculos que fixou planeta e cometa como masculinos e tribo como feminino foi diferenciando o espinho do espinheiro da espinha do peixe (embora o grande número de pessoas que falam no espinho do peixe pareça indicar que o gênero deste vocábulo ainda não sedimentou completamente). É assim que funciona.

A mesma ausência de um padrão definido atua no caso dos países: o que há de masculino no Uruguai e no Japão? E de feminino na Hungria e na Etiópia? Nada. Aliás, uma olhadela numa língua irmã como o Francês revela que por lá os critérios, igualmente misteriosos, são diferentes dos nossos; o Chipre e o Egito são femininos, enquanto a Guiana, a Nicarágua e a Venezuela são masculinos. Acha estranho? Estranho mesmo, para mim, é vagina ser masculino para os súditos de Macron (le vagin), mas eu não tenho nada com isso; afinal, como se diz por aí, cada roca tem seu fuso, cada povo tem seu uso.

CLÁUDIO MORENO

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