sábado, 8 de junho de 2019



08 DE JUNHO DE 2019
PAULO GLEICH

HERANÇAS E RESTOS

Faz quase 15 anos que meus avós morreram, seguindo o que se acredita ser o curso natural das coisas: velhinhos, com muitos anos bem vividos. Amava muito os dois, que eram para mim como avós de livro. Ela, de cabelos brancos amarrados em um coque, sempre de braços abertos e com carinhos e guloseimas à espera dos netos. Ele, mais sisudo e calado, também por falar uma língua diferente, encontrava pontos de conexão conosco nos jogos de cartas e tabuleiro e em algumas brincadeiras.

Após partirem, tínhamos diante de nós a tarefa de nos havermos com os bens e pertences a serem divididos entre os herdeiros. Isso transcorreu com relativa tranquilidade, atestando uma herança imaterial importante: a capacidade de seus herdeiros de superar diferenças e chegar a consensos. Em muitas famílias, esse é um momento delicado, até violento, com a emergência de afetos enterrados, disputas cheias de ciúmes e invejas, rancores e ressentimentos.

Mas não eram apenas bens que eles haviam deixado e que era preciso administrar. Havia toda uma casa, recheada de cartas, fotografias, documentos, memórias, objetos de uso pessoal. Vasculhar todos esses objetos não era uma tarefa simples, não apenas pelo volume: era haver-se com os restos íntimos daquelas pessoas, para além da face mais conhecida de ambos. Acompanhei a abertura de antigos armários, caixas, às vezes fazendo achados surpreendentes, que me apresentaram a outros sujeitos para além de meus avós de livro.

Além desses restos, muitos dos quais ainda estão em caixas e armários, deparei com outros ao me ocupar de refletir sobre meus avós no divã. Ali, pude pensar e entendê-los melhor em suas outras facetas: de pai e mãe do meu pai, de marido e mulher na relação entre eles, de homem e mulher na relação com o mundo em que nasceram e viveram. Alguns desses achados não foram muito alegres, alguns despertaram raiva e tristeza, mas todos me ajudaram a entender melhor minha família e, por extensão, a mim mesmo.

Se inicialmente questionei algumas escolhas de meus avós, lamentando não poderem ter sido mais felizes se tivessem feito outras, tempos depois pude compreender que aquelas haviam sido as escolhas possíveis. Não cabia tanto interrogar e lamentar o que poderia ter sido diferente, mas me haver com os efeitos que aquilo tivera nas gerações futuras. Lidando com seus restos, pude constatar que eles me pertenciam, mesmo que até então não tivesse consciência deles.

Costumamos pensar a herança, material ou imaterial, como valores que nos são legados pelas gerações anteriores. Nos orgulhamos do que herdamos, pois isso nos diz daquilo que recebemos e pudemos aproveitar daqueles que antecederam nossa chegada ao mundo. Junto com essa herança, porém, vêm invariavelmente restos, nem sempre conhecidos e desejados. São as intimidades ocultas, os aspectos menos luminosos que compõem a vida de qualquer pessoa.

Podemos ignorar ou varrer para baixo do tapete esses restos, mas de alguma forma eles acabam por se manifestar em nossas vidas. Não é possível escolher não recebê-los, ficando apenas com a parte boa da herança - mas podemos, sim, escolher como lidar com eles. Se é papel daqueles que nos antecederam transmitir um legado, cabe a nós nos ocuparmos daquilo que nos chega: a bem-vinda herança, mas também os inevitáveis restos que uma vida - ou uma geração - produz e deixa para trás.

PAULO GLEICH

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