segunda-feira, 3 de junho de 2019


03 DE JUNHO DE 2019
CLÁUDIA LAITANO

Viés ideológico


Nenhuma opinião política é neutra do ponto de vista moral. Da reforma da Previdência à instalação de uma mina de carvão a 15 quilômetros de Porto Alegre, não há assunto que não seja filtrado por uma determinada visão de mundo - composta por noções de certo e errado, justo e injusto, moral e imoral.

Temas como a descriminalização do aborto e a legalização das drogas, porém, colocam o aspecto moral das nossas convicções em ainda mais evidência - o que explica, em parte, por que é tão difícil discutir racionalmente esses assuntos no Brasil. Enquanto a atrasada legislação brasileira em relação ao aborto não avança e ainda corre o risco de retroceder, a política de combate às drogas não pode ser deixada de lado tão facilmente - menos pela preocupação com a saúde dos usuários do que por estar associada com a segurança pública e o sistema prisional. 

Na última quarta-feira, o Senado aprovou um projeto de lei que altera - para pior - a política nacional de drogas como ela vinha sendo praticada no país desde o governo Fernando Henrique Cardoso. Entre as novidades mais criticadas, estão a possibilidade de internação involuntária dos dependentes químicos e a incorporação das comunidades terapêuticas ao Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad).

Se o debate sobre o aborto esbarra em questões filosóficas e religiosas difíceis de gerar consenso (O que é uma vida humana e quando ela começa? Qual o direito do Estado sobre o corpo de uma mulher que espera um filho?), na discussão sobre drogas podemos quase sempre nos apoiar em evidências científicas. Há pesquisas, dados e estudos a serem considerados. Nada disso, porém, parece ter sido levado em conta pelo ex-deputado e agora ministro Osmar Terra, autor do projeto que vai na contramão das orientações da ONU sobre o assunto, reunidas em um relatório lançado no ano passado.

O projeto, que será encaminhado agora para a sanção do presidente, fortalece de forma inédita as controversas comunidades terapêuticas, entidades administradas em sua maioria por organizações religiosas e que nem sempre contam com equipes multidisciplinares ou são submetidas a avaliações técnicas regulares. Isso significa que, com o novo projeto, o governo federal se compromete a despejar grande quantidade de dinheiro público em entidades privadas sobre as quais não tem controle. O que se sabe é que o proselitismo religioso e a imposição de técnicas consideradas pouco eficientes e cruéis, como a abstinência forçada, são a base do tratamento em muitas delas.

Na semana passada, o ministro Osmar Terra desqualificou o Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas, realizado pela respeitada Fundação Osvaldo Cruz, alegando que a instituição teria "viés ideológico" de liberação das drogas. Isso porque o estudo não confirmou a existência de uma epidemia de drogas no país, tese defendida pelo ministro sem apoio de evidências. 

Osmar Terra está tão imerso em suas crenças, que parece não perceber o quanto sua própria visão sobre o assunto é afetada por inclinações morais - também conhecidas como "viés ideológico". Não sei vocês, mas, se eu estivesse doente, procuraria um tratamento baseado em ciência, e não em moralismo.

CLÁUDIA LAITANO

Nenhum comentário: