Entrelacos

12 DE MARÇO DE 2018

SALTIMBANCOS

O anjo da Esquina Democrática

ARGENTINO ABRAHAM PONCE é o personagem do segundo episódio da série que conta a história de artistas de rua de Porto Alegre

Tão certo como a estátua de Carlos Drummond de Andrade lendo para o amigo Mario Quintana na Praça da Alfândega é a figura de um anjo na Esquina Democrática, no centro de Porto Alegre. Você já deve tê-lo visto, afinal, ele é presença marcante na região há 20 anos.

Diferentemente dos escritores ilustres, a estátua viva é ativa. Aguarda a aproximação de alguém para poder entregar mensagens "de paz e de conforto".

- Sou um artista. Eu não abordo as pessoas. As pessoas me abordam. As pessoas têm que enxergar algo para chegar perto de mim - diz.

De dentro de uma surrada caixinha, que já acusa o tempo de vida, o argentino Abraham Ponce retira mimos e agracia quem o recompensa com algum trocado. Puxa um bilhete que entrega para crianças e adultos. Os pequenos ainda ganham um cordão com algum pingente de acrílico.

- Cada pessoa que colabora eu dou uma mensagem. Não uma mensagem para dar conselho, e sim uma mensagem de fé e esperança, de que a vida é boa e vale a pena ser vivida. Também dou uma fitinha com cristal, flor, uma carinha. Cada criança, para marcar, tu tens que dar algo - conta Abrahm.

O anjo prefere não revelar a idade: "Eu estou chegando aos 50". A estátua viva contempla as mudanças que o centro vivenciou nesses últimos 20 anos. Reclama da falta de apoio dos governos, das exigências feitas pela Brigada Militar, que não o deixa ficar no cruzamento da Avenida Borges de Medeiros com a Rua dos Andradas. Também vê dificuldade ao ter de disputar espaço com vendedores ambulantes para poder trabalhar:

- Há dois anos, a Andradas tinha um monte de artista de rua. Hoje em dia, não tem quase ninguém. Se você andar agora mesmo vai ver muito pouco artista. Cada vez tem menos espaço para o artista aqui em Porto Alegre.

Mesmo assim, vale insistir na arte?

- Insisto porque, graças a Deus, eu tenho a minha família que está por trás. É um personagem que eu quero que fique na memória para todas as crianças e pessoas que passam aqui por mim. Quero que se lembrem mesmo após cem anos e digam: "Quando eu ia ao Centro com a minha mãe ou minha avó, tinha um anjo que me dava um papelzinho, me dava algo". Eu quero deixar isso em cada criança e pessoa.

Foi uma perda na família que o fez mudar de vida e de país. A morte de uma sobrinha de apenas quatro anos teve como consequência a decisão de Abraham em fazer as crianças felizes. Ele tentou alegrar seus conterrâneos, mas revela que enfrentou dificuldades na Argentina, sem entrar em detalhes. A partir daí, decidiu ser andarilho. Conhecer a América Latina. Parou em Porto Alegre.

- Tentei fazer um palhaço, mas para fazer palhaço é preciso ter a graça e o dom do palhaço. E aí não deu tão certo. As pessoas acreditam em um anjo. Sabemos que estamos em um país com várias culturas religiosas. Um anjo era um personagem mais adequado - ressalta.

CUIDADOS NA MAQUIAGEM E EQUIPE DE COSTUREIRAS

Para incorporar o personagem, Abraham revela seus segredos. Conta com uma equipe de costureiras para quem apresenta as ideias que tem. E há ainda os cuidados para se maquiar:

- A maquiagem eu compro. É especifico para a pele. Cada potinho que eu uso sai R$ 70 para me pintar. (É um creme) que não prejudica minha pele e que me protege do sol.

Mas a vida de um anjo não é das tarefas mais fáceis. Para aumentar a renda, chegou a tentar mudar de ramo com a família:

- Tentamos botar um salão de beleza. Tenho curso de design de moda. Só que nada disso me enche o coração como estar parado aqui, trabalhando como artista de rua, poder dar um pouco de carinho para as pessoas que passam por aqui.

Não será a primeira vez que a capital gaúcha encantou portenhos, mas agora atrai até "anjos" como Abraham:

- Apesar das dificuldades que vivemos, eu amo Porto Alegre. As pessoas me dizem: "O que tu estás fazendo aqui? Tu pode ir para outros países". Só que eu respondo: "Amo Porto Alegre".

fernando.zanuzo@rdgaucha.com.br jocimar.farina@rdgaucha.com.br - FERNANDO ZANUZO JOCIMAR FARINA