sábado, 3 de março de 2018


03 DE MARÇO DE 2018
PAULO GLEICH

JET LAG DA ALMA


Quem já viajou ao Exterior muito provavelmente experimentou este curioso fenômeno, parente da descompensação sofrida pelo corpo após atravessar vários fusos horários em poucas horas. Não sucede em qualquer viagem, porém, como naquelas excursões em que se visitam cinco países em 10 dias, passando mais tempo em trânsito do que nos próprios lugares. Também não ocorre em viagens que se vai do outlet ao McDonald?s, numa tentativa de evitar contato com o desconhecido. Para que aconteça, requer que o viajante fique algum tempo em um lugar estrangeiro e se deixe impregnar pela cultura local.

Nos dias que se seguem à volta, ele se manifesta: o sujeito prepara um prato autóctone ou drink que experimentou na viagem, usa uma peça de roupa ou acessório pouco habituais em seu hábitat natural. O amigo que voltou do México leva ao happy hour molho inglês e tabasco para colocar na cerveja e fazer uma chelada. O sobrinho retorna de uma temporada na Argentina com um mullet, penteado em desuso no Brasil desde o fim dos anos 1980. Uma conhecida regressa da Austrália com potes de vegemite, uma pasta preta que parece petróleo - inclusive no sabor.

Não é raro que familiares, amigos e conhecidos torçam o nariz, seja diante do exotismo do hábito estrangeiro, seja por uma inveja mal disfarçada na acusação de só querer "se aparecer". Na maioria das vezes, porém, não se trata de nada disso: é apenas o jet lag da alma. Trocar o chip do celular após o pouso é simples; retomar os hábitos de sono custa um pouco, mas também passa em alguns dias. O chip da alma, porém, requer seu próprio tempo após a aterrissagem do avião e do corpo para se recolocar no lugar.

Ao contrário do que se possa pensar, o psiquismo não é uma entidade fixa e imutável que nos habita, independente das circunstâncias. Pelo contrário: assim como se constituiu pelo meio que cercou a criança em sua infância, ele segue sendo permeável ao ambiente que nos rodeia. Nossas convicções são bastante voláteis, basta relembrar de quantas águas que juramos jamais tocar acabamos bebendo, não raro até gostando. O poeta Rimbaud sintetizou isso com a simplicidade que só os gênios alcançam ao escrever que "eu é um outro".

Esse tempo de despressurização após uma viagem revela essa tão humana labilidade da alma, mas também um desejo de manter a ampliação de nós mesmos que uma boa experiência fora de casa proporciona. Visitar o estrangeiro não é só ter contato com o exótico e o diferente fora de nós, mas também ampliar nosso próprio eu com aquilo que esse encontro com o estranho proporciona. Banhar-se em outra cultura é perceber que há bem mais sob o céu do que a vã filosofia que nos acompanha na aparente mesmice à qual o cotidiano empurra.

Mas não é preciso viajar ao Exterior para experimentar esse fenômeno: o estrangeiro habita nosso próprio país, nas tão diferentes regiões e culturas que o compõem, e até mesmo em nossa cidade. A distância geográfica e cultural apenas facilita essa abertura ao estrangeiro, pois em casa somos bem mais ciosos em sermos da forma como estamos acostumados. Mas até mesmo o retorno de uma temporada em Capão pode levar a sua manifestação: caso contrário, o que justificaria que alguém em Porto Alegre decida, numa tarde de domingo, ir atrás de um crepe?

PAULO GLEICH

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