sábado, 10 de março de 2018


10 DE MARÇO DE 2018
LYA LUFT

A casa e o biombo do silêncio



Hoje, quando ainda ecoa o assunto mulher, e me avisam que, apesar de ter nascido meio órfão, meu livro A Casa Inventada está sendo abraçado pelos leitores, me permito transcrever um trechinho dele.

Num canto da sala aonde quase ninguém vai, um biombo. Nem alto nem baixo, nem sólido nem rendado, claro ou escuro. Apenas biombo. Que quase ninguém percebe, atrás do qual poucos espiam. Não se interessam, ou sentem algum receio. Porque as coisas escondidas podem ser perigosas.

Além dele, abre-se o espaço do silêncio. Esse, temido por tantos, desejado por alguns, aproveitado por poucos. Primeiro, aquele silêncio que surpreende como quando a gente entra numa sala e todo mundo está falando alto, assuntos diferentes, TV ligada com volume espantoso, alguém rindo, criança chorando, cachorrinho latindo (quem sabe um gato miando). E a gente pede: "Pelo amor de Deus, podem baixar esse volume?". Todos se calam, nos olham, alguém desliga a TV, e imediatamente todos, todos, suspiram.

Que alívio, o silêncio. Nele se desenrola o reino em que podemos escutar a nossa própria voz, ou as vozes de dentro: que nos encantam, nos assustam, nos atordoam, das quais queremos beber o segredo ou fugir em disparada.

Mas, com medo dele - porque nos faria escutar a nossa própria voz ou os ecos do nosso vazio interior -, nos rodeamos de ruídos. E por medo da quietude nos ocupamos com tarefas em geral inúteis. Temos sempre de fazer tantas coisas, e tomar tantas providências, que, se passadas por um filtro de bom senso, seriam reduzidas a menos da metade. O resto seria reservado para descansar, ver algo bonito ou bom, ler, conversar, olhar a natureza, relaxar, ser mais feliz.

Mas a gente não consegue, e sai correndo atrás do próximo trem, do próximo avião, do próximo encontro, do melhor restaurante, da obrigação mais desafiadora, pois temos de ser competitivos.

(Enquanto a gente corre, as velhinhas que tricotam dentro dos relógios não param um segundo sequer, as agulhas do tempo tecendo, tecendo... Ah, o tempo.)

O tempo no silêncio fica tão diferente. Eu, a quem chamaram desde sempre preguiçosa e amante da inércia, preciso da quietude: nela vislumbro paisagens incríveis, nuvens assombrosas, as pedras, o mar. As pessoas. Gosto do silêncio. Ali ouço coisas fascinantes que não consigo traduzir em palavras, eu que sou uma mulher das palavras. Músicas, harmonias, toda espécie de sons ou dessa ausência de sons que também ressoa.

Mas preciso que perto estejam as vozes amadas, em alguma parte um barulho de chuva, e sempre, ainda que longe, o rumor do mar. Assim como nos espelhos permanecem as figuras que um dia ali se refletiram, acredito que guardamos no nosso silêncio a memória de todas as vozes ouvidas: amorosas e sábias, cretinas ou hostis. As vozes do mundo. E a nossa voz perguntando baixinho: "Afinal, o que é tudo isso que chamamos vida - e o que estou fazendo com a minha?".

LYA LUFT

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