
Geração sem cicatrizes
Eu tenho cinco cicatrizes na cabeça, de quedas na minha infância.
Sou costurado, um pouco Frankenstein. Mantinha carteirinha no pronto-socorro Cruz Azul, da ladeira da Mostardeiro. Os enfermeiros me atendiam pelo nome.
Uma vez levei 14 pontos no pega-pega com meus irmãos, quando me choquei com a quina de uma parede no pátio. Outra vez contabilizei oito pontos, quando banquei o Tarzan e decidi ir do telhado até o chão segurando a corda do varal. Também tive corte no recreio da escola ao tropeçar e mergulhar no portão (cinco pontos), ao bater bola dentro de casa e me esborrachar numa mesa (12 pontos), ao brincar de touro - fazia o papel do animal chifrudo, novamente com os irmãos - e ir com o lençol de encontro a uma cerca (sete pontos).
Alcancei a pontuação (46) que Inter, Grêmio e Juventude precisam para escapar do rebaixamento. Eu subia em árvores, teimava em imitar super-heróis, aprontava molecagens. Aprendi assim quais são os limites do meu corpo e me eduquei ao perigo.
Entre os manos, teve quem quebrou o braço e a perna e suportou a imobilidade e a tala do gesso.
Todos diziam que nós éramos terríveis. Esqueci de contar em quantas ocasiões ralei o joelho descendo lombas de bicicleta ou fingindo ser o Flash Gordon entre materiais de construção. Fui uma peste, misto de azarado e distraído.
Mas a vida tinha um tanto de realidade, as travessuras tinham um tanto de aventura. Sabíamos o que significava sangrar, temíamos as feridas, esperávamos sarar.
Já meus filhos não exibem nenhuma marca - apenas as das vacinas. Não enfrentaram nenhuma expedição em terreno baldio, nenhuma guerra de bexiguinha, nenhuma batalha armados com vassoura e o escudo da tampa de lixo. Não jogaram futebol na rua nem taco com os amigos na calçada.
Não que eu os tenha protegido melhor: é que já são do mundo digital. Toda a sua formação partiu da virtualidade. Representam a era dos filhos do apartamento, não do quintal.
Agora as crianças são do celular. Aprofundaram ainda mais as simulações. Percebem a natureza por ouvir falar, por ler, por assistir, por espiar a metros de distância no zoológico, atrás das muradas.
Existe uma superproteção que conduz nossos rebentos à alienação dos sentidos - a nunca abandonar os dentes de leite do coração. Mal reclamam com um "ai" e se veem amparados. Os pais assumiram a condição de dublês emocionais, e querem substituí-los para que não sofram um arranhão.
Isso é obra do amor, entretanto um amor que não permite que cresçam sem autorização. Não ajuda a criar resistência. É uma intimidade que não inspira o pequeno a se responsabilizar pela sua ação. É uma infantilização da experiência.
Há diferença entre estar por perto e viver no lugar do outro. O zelo excessivo gera indivíduos desprovidos de anticorpos sociais. Teoricamente preparados, tecnicamente incapazes de discernir o que é necessário ou não, o que comove ou não, o que é bom ou ruim. Correspondem a almas sem pele.
Sob o pretexto verídico da violência, dos assaltos e dos sequestros, subtraímos o envolvimento com os vizinhos e com o chão de fábrica das emoções. O corredor do prédio tornou-se a única avenida frequentada.
Como propor um cuidado com as árvores se não ocorre a distinção de uma pitangueira, de um flamboyant, de uma figueira? Como se aproximar dos passarinhos se o pio do pardal passa a ser igual ao canto do sabiá? Como ensinar ecologia aos filhos transmitindo o pavor do contato?
Não os deixamos tomar banho de chuva porque irão se gripar. Não os deixamos mexer no fogão porque poderão se queimar.
Isolamos as crianças para que não corram riscos. Coletivizamos a bolha. Longe da vulnerabilidade, desconhecerão a própria coragem.
Prevenindo o pior, eliminamos o que há de mais notável na existência: a espontaneidade. A possibilidade terapêutica de simplesmente alegar, diante de uma ferida, que "não foi nada", e soprá-la. _