segunda-feira, 22 de junho de 2020



22 DE JUNHO DE 2020
ENTREVISTA

"Vou ter outro conceito de vida. Só quero fazer trabalho social"

JOSÉ IVAN ALBUQUERQUE MATIAS Gaúcho sequestrado pelas Farc

Por quase 90 dias, a rotina do gaúcho José Ivan Albuquerque Matias, 50 anos, foi assistir à TV e observar crianças brincando com fuzis AR-15 e pistolas. Sequestrados por guerrilheiros dissidentes das Farc, na Colômbia, o técnico de vendas Matias e seu companheiro, o banqueiro suíço Daniel Max Guggenheim, 67, passaram por 11 cativeiros até serem resgatados pelo Exército colombiano, na quinta-feira passada. Ex-morador de rua e fundador de uma associação de catadores em Porto Alegre, Matias vive fora do Brasil há cerca de uma década. 

Já visitou 35 países, mora em Buenos Aires e, na Colômbia, foi capturado durante uma viagem de férias que duraria quatro meses. Na manhã de sábado, Matias e Daniel participaram de uma solenidade em que representantes do exército fizeram um pedido de desculpas pelo ocorrido em nome da população da Colômbia e entregaram uma medalha ao casal. Ontem, os dois prestariam depoimento às autoridades colombianas. Desde o resgate, depois de passar por um hospital, o gaúcho e o suíço estão em um hotel em Bogotá sob forte esquema de segurança. Matias conta que o sequestro o fez mudar a visão de vida e que estuda abrir escolas no Brasil, a começar por sua terra natal, Carazinho. Ele também planeja escrever um livro contando a experiência.

Como foram capturados?

A gente estava numa cidade que tinha o toque de recolher (por causa da pandemia). Iria começar o toque de recolher no dia 20 de março, e as pessoas não poderiam sair. O GPS nos deu essa rota, só não avisou que era uma zona vermelha, proibida. Quando paramos para pedir informação, nos capturaram. Pensei que a gente ia morrer.

O que eles falaram para vocês?

Perguntaram o que estávamos fazendo ali, pois a região é só para quem tem permissão. Disseram que havíamos chegado ao cemitério, que a gente não iria sair vivo.

Foram levados para onde?

Nos revistaram, nossas roupas, computadores. Voltamos para a caminhonete e já tinha um motorista deles na direção. Fomos para a beira de um rio. Lá, Daniel conseguiu enviar mensagem para filha dele dizendo que estávamos sequestrados. Fomos para uma casa, o primeiro cativeiro, e fizeram a primeira proposta de resgate no sábado (21 de março). Inicialmente, eram 30 milhões de pesos colombianos, depois, 5 milhões de pesos e a última foi de US$ 250 mil.

O senhor ligou para sua família. Eles deixavam vocês ligarem do cativeiro?

Não, só podia ligar com permissão do comandante.

Como vocês foram tratados nos cativeiros?

Não nos trataram mal, não nos amarraram, tinha comida. Remédio a gente tinha, mas eu ficava em pânico quando estava perto de terminar, nossos remédios são só com prescrição médica. Eles tinham de pedir com uma semana de antecedência, pois aí alguém do comando conseguiria em Cali. Tomo remédio para pressão alta, e Daniel, para arritmia. Sempre que trocávamos de cativeiro, era de noite, de madrugada. Diziam que o exército estava chegando, eles tinham informante no exército.

Por isso, na ligação, o senhor falou para sua irmã não procurar o exército?

Sim, eles tinham informantes no exército de Cauca. A gente era para ser resgatado quatro ou cinco dias depois, não era para ficar para tanto. Mas, com esses informantes, mudavam a gente de cativeiro.

Eles ameaçavam vocês de morte ou só exigiam o dinheiro?

Ameaçar de morte foi só uma vez quando a gente telefonou, se a gente mandasse a localização de onde a gente estava, iam nos matar.

Quantos guardas tinham?

No começo, ficavam quatro, dois de dia e dois de noite. Nos últimos tempos, tomaram certa confiança em nós, ficavam dois ou três. Na noite em que fomos resgatados, tinha um e sem arma. Eles sempre estavam armados de fuzil AR-15.

Qual era a rotina de vocês no cativeiro, para passar o tempo?

Levei livros para estudar alemão, a gente iria ficar quatro meses de férias e eu ia aprender. Nas duas primeiras semanas, fiquei com os livros. Mas eles tiveram um aviso de um informante do exército e nos tiraram tudo, relógio, pulseira, anéis, porque eles pensavam que as roupas poderiam ter chip para nos localizar. Em alguns cativeiros, tinha televisão, daí a gente assistia. Tinha hora para tomar sol, horário para banho com água gelada.

Os guardas conversavam com vocês? Sobre o quê?

Só alguns, havia uma estratégia. Uns acalmavam. Outros, que achavam que a gente estava calmo, diziam que iriam ficar com a gente por meses e anos. E sempre aumentavam o valor do resgate. Os que tinham patente maior pouco falavam. Um que tinha codinome de "cunhado" passou a falar mais. Depois que caí, bati a cabeça e sangrou, eles resolveram chamar a Cruz Vermelha. Minha mãe recebeu aí em Porto Alegre o pedido de socorro que enviei.

Como foi esse pedido?

Por um formulário que buscaram na Cruz Vermelha. Alguém deles foi na Cruz Vermelha, acho que uma irmã dos sequestradores, foi buscar o formulário para a gente preencher. Tinha de falar da nossa situação, que a gente estava mal e precisava de remédio, para eles (os familiares) contatarem a Cruz Vermelha para nos resgatar de lá. Mas a Cruz Vermelha não entrega dinheiro. Quando a gente soube, voltou todo aquele pânico.

Houve algum pagamento?

A gente não sabe. A cônsul da Suíça aqui pediu para a gente não falar de valores. Supostamente foi pago, mas não tenho certeza.

Como foi o resgate?

Por causa dos remédios, estava meio tonto, e daí ouvi o helicóptero já em cima da casa. Falei para o Daniel: "É o exército". Nisso, invadiram o quarto. Fiquei paralisado, o soldado teve de me arrastar. Fomos para uma base no Vale do Cauca, tinha psicólogo, enfermeiro, nos deram soro e tiraram as fotos que rodaram o mundo. Depois, fomos para Bogotá. Estamos em um hotel do exército.

O senhor foi morador de rua, catador, viajou 35 países e agora passou por essa experiência. Vou ter outro conceito de vida. As viagens vão diminuir. Só quero viajar para fazer trabalho social.

ADRIANA IRION

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