sábado, 24 de agosto de 2019



24 DE AGOSTO DE 2019
DAVID COIMBRA

Anos dourados e outros nem tanto

Na fotografia, estamos felizes. Veio-me o verso imortal do Chico quando vi a imagem que o Noriega me enviou por WhatsApp, dias atrás.

Aliás, essa música, Anos Dourados, não é uma música; é uma crônica. Maria remexe nos seus guardados e encontra uma velha foto em que ela e seu ex-amor dançam. Ele está falando algo que parece ser:

- Te amo, Maria.

Vê-lo outra vez a desconcerta, e ela acaba fazendo o que fazem os bêbados de madrugada: liga para ele. Mas ele não atende, a ligação cai na secretária eletrônica. Ela, ofegante, faz confissões confusas de paixão desfeita, desliga e pensa que será engraçado, se ele tiver outra mulher. Então, recorda-se do amargo da separação, quando prometeu que nunca mais o beijaria. Seus olhos, que ainda fitam a foto, começam a marejar e ela tenta lembrar que música dançavam naquela noite. Supõe que era um bolero, em um dezembro dourado e louco. Agora, chorando, Maria conclui que ainda o ama, mas, como havia prometido, sabe que nunca mais o beijará. Nunca mais.

Você pode não gostar das opiniões políticas do Chico, tudo bem, mas ouça essa música com atenção e sorva uma obra-prima da poesia breve.

Já eu e o Noriega não dançávamos na foto, embora também parecêssemos felizes. Estávamos no Japão, durante a Copa de 2002 ou o Mundial de 2006, sentados nos bancos de um ônibus que nos levaria para algum estádio ou campo de treinamento.

Nessas coberturas internacionais, construí boas e duradouras amizades com colegas de todo o país. O Noriega a quem me refiro, você deve saber, é o Maurício Noriega, da Sportv, um dos melhores comentaristas de futebol do Brasil. Além de ser inteligente, saber falar e conhecer o jogo, ele tem uma qualidade que aprecio em especial: o bom senso. Quando o Noriega se manifesta sobre o que quer que seja, sempre emitirá uma opinião sensata.

Bem. Dias atrás, o Noriega fez uma observação a respeito do ex-técnico do Fluminense Fernando Diniz. Disse que Diniz mostrou ideias bacanas, mas ainda não teve resultados. Nossa! As redes sociais se ergueram como o Mar Vermelho diante do bastão de Moisés e Noriega foi vilipendiado como se carregasse a peste negra para dentro das muralhas da cidade.

Conheço de sobejo a fúria azeda das redes, mas, desta vez, me assombrei: o Noriega? Será que as pessoas não percebem que ele é sobrinho da Coerência e primo-irmão da Ponderação?

É que os torcedores levam o futebol muito a sério, e isso é preocupante. O futebol, na essência, é uma brincadeira. Claro: milhares, talvez milhões de pessoas vivem do futebol, o que é sério. Mas as brincadeiras também têm de ser levadas a sério. Se você vai participar de um jogo, tem de obedecer as regras, jogar com lisura e respeitar os outros participantes. Você tem de saber brincar. Então, você joga a sério, mas o jogo continua sendo um jogo. Continua sendo uma brincadeira.

O futebol, se deixar de ser uma brincadeira, perderá a graça; perdendo a graça, deixa de ser divertimento; deixando de ser divertimento, não tem mais razão de existir.

O jogador pode ser um profissional sério, mas ele só será bom realmente se estiver se divertindo enquanto trabalha. Como o jornalista. Como o taxidermista que ora me lê. Como qualquer outro. E o torcedor, se brigar, ofender e for ofendido por causa do futebol, perderá o prazer de torcer. Assim, e só assim, o futebol tem sentido.

Nós, agora, estamos próximos de dois Gre-Nais históricos, que decidirão o campeão da Copa do Brasil. Que torcedores, dirigentes e jogadores lembrem-se disso: o futebol é só um jogo. Um sairá campeão e o outro vice; um ganha, o outro perde; mas depois, seja em anos dourados, como os que o Chico cantou, ou de chumbo, como são os dos intolerantes, depois, e para sempre, o jogo continua.

DAVID COIMBRA

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