sábado, 31 de outubro de 2015


01 de novembro de 2015 | N° 18342 
MARTHA MEDEIROS


O cartão do estacionamento

Nada se compara com a relação que tenho com aquele pequeno papel cuspido por máquinas a fim de liberar a entrada

Sou meio avoada, às vezes esqueço onde larguei as chaves, os óculos, mas, até aí, quem não? Nada se compara, no entanto, com a relação que tenho com aquele pequeno papel cuspido por máquinas a fim de liberar a entrada nos estacionamentos de supermercados e shoppings. Pego o tíquete e largo no console do carro. Ou pego e largo em cima do painel. Ou pego e jogo dentro da bolsa. Tudo da mesma forma mecânica como ele me foi entregue, pá pum, e bora entrar no prédio a fim de encontrar logo uma vaga.

Depois de algumas voltas, a sinalização verde em cima de uma vaga indica: liberada, é sua. Então, estaciono. E a partir daí a história de terror pode ter vários roteiros.

1) Eu esqueço a droga do tíquete dentro do carro. Vou ao cinema, vou às compras, faço o que tenho que fazer e então retorno para o carro e reparo que o tíquete ficou ali. Com ódio de mim, lá vou eu de novo para dentro do shopping ou do supermercado a fim de validá-lo para a saída. Perdi minutos que não tenho para desperdiçar.

2) Eu esqueço a droga do tíquete dentro do carro. Vou ao cinema, vou às compras, faço o que tenho que fazer e então retorno para o carro e NÃO reparo que o tíquete ficou ali. Ligo o carro, dirijo até a cancela e só então me dou conta de que não validei o tíquete, e já tem outro carro atrás de mim fazendo sinal de luz ou buzinando histérico. Não podendo dar ré, tenho que encontrar uma rota de fuga lateral ou então chamar alguém pra me ajudar e aí não estou mais com ódio de mim, e sim desejando a extinção da humanidade.

3) Eu não esqueço a droga do tíquete no carro. Carrego comigo. Vou ao cinema, ao teatro ou à Livraria Cultura, no Bourbon Country. Na hora de ir embora, subo pelas escadas rolantes e só quando estou lá em cima é que me dou conta de que os guichês de pagamento estão lá embaixo, escondidos num canto. O plano é fazer com que a gente circule pelos corredores do shopping e seja atraído por alguma vitrine, gastando mais do que o pretendido inicialmente. Genial. Porém, mais genial seria manter os guichês na saída, como era antigamente, a fim de facilitar a vida dos clientes.

4) Eu não esqueço a droga do tíquete no carro, eu faço o que tenho que fazer e antes de ir embora eu lembro de validar o tíquete no caixa do súper ou de pagá-lo no guichê do shopping, tudo direitinho. Então vou até o carro e, nesse curto trajeto entre a saída do estabelecimento e a entrada no veículo, o tíquete some. Desaparece. 

Não o encontro em local algum. Reviro a bolsa, a carteira, olho embaixo dos bancos, dentro do porta-luvas: o tíquete evaporou. Retorno para dentro do estabelecimento com a cabeça baixa e as palmas das mãos unidas e estendidas, podem me algemar. Em qualquer um desses roteiros, a conclusão é de que a culpa é toda minha: ainda vivo no tempo em que estacionamento era de graça.

01 de novembro de 2015 | N° 18342 
MOISÉS MENDES

A normalidade brasileira


Luís Cláudio Lula da Silva sai da festa de 70 anos do pai, na quarta-feira, em São Paulo, e vai para o apartamento onde mora. Logo depois, por volta das 23h, emissários da Polícia Federal batem na porta e o intimam a depor por suspeita de envolvimento em ações de lobistas do setor automobilístico junto ao governo. Os agentes da lei foram brindados por uma casualidade – o aniversário de Lula e a intimidação de um filho dele, pouco antes da meia-noite. 

Mais uma hora e a coincidência estaria desperdiçada. Se Luís Cláudio escapar, Lula já avisou: tem mais três filhos e sete netos que ainda não foram investigados. Um deles será pego. Homens da lei devem saber o que fazem com suas ações noturnas. A normalidade dispensa o sol e a claridade.

Eduardo Cunha manobra, à direita e à esquerda, para sobreviver. Não se ouve, vindo da universidade, o mais tênue jogral de vozes contra Cunha, seus cúmplices golpistas e o que ele representa para a degradação do parlamento, da política e da democracia. Nem vozes desafinadas são ouvidas. As vozes fortes, legalistas, que enfrentaram golpistas, sob todos os riscos, nos anos 60 e 70, calaram-se na academia no Brasil. Não têm força nem para enfrentar um Eduardo Cunha. A universidade descobriu o conforto da abstinência de posições. Não incomodem a universidade brasileira, não tentem tirá-la da normalidade.

O Congresso exerce com crueldade seu poder de destruição, com a pauta-bomba comandada por Eduardo Cunha, Caiado, Aécio e Zé ?Agripino. E o empresariado brasileiro faz seminários para debater novos mercados na Indonésia. A oposição pulveriza o ajuste, cria despesas e faz força para quebrar o país ainda neste ano. E o empresariado faz eventos sobre como vencer na crise que não é dele, é dos outros. 

Em um encontro recente de dirigentes de empresas de ponta do país, alguns fizeram apelos para que a elite econômica reaja. Bradaram em discursos: vamos nos unir, pressionar o Congresso e parar de nos queixar. Foi na semana passada. Nada aconteceu. O ministro Joaquim Levy é o aliado largado na sarjeta. Assim caminha a resignada normalidade da elite empresarial do país.

Manchetes de quinta-feira: Bradesco fecha o terceiro trimestre com lucro líquido contábil de R$ 4,1 bilhões, 6,1% acima da cifra do mesmo período de 2014. Nos primeiros nove meses do ano, o lucro líquido chegou a R$ 13,3 bilhões, 18,6% acima do mesmo período do ano passado. Não se sabe qual foi o lucro gasoso. Mas o Bradesco e outros bancos estão preocupados com a inadimplência. Um executivo admitiu que o lucro sobe, enquanto cresce o atraso nos pagamentos, porque o mercado passa por “uma breve situação de estresse”. 

O Nobel de Economia Joseph Stiglitz já afirmou que o Brasil é um país tão estranho, que o setor produtivo se apaixona pelos bancos, a ponto de achar que os ganhos absurdos deles também acabam sendo seus. Os lucros dos bancos no Brasil explodem enquanto a economia encolhe porque são uma das mais antigas normalidades do nosso capitalismo.

Carlos Alberto Brilhante Ustra, o mais famoso torturador da ditadura, recebe homenagens póstumas de colegas militares. Nem a tortura impõe limites à nossa normalidade.


01 de novembro de 2015 | N° 18342- | 
Cláudia Laitano

Pecados da carne


Bacon, salsicha, linguiça e presunto estão sendo fritados - não como as batatas e os bolinhos de chuva, mas como políticos que correm o risco de perder o mandato e cair no ostracismo. O estudo da Organização Mundial de Saúde que colocou alimentos processados ("sabidamente carcinogênicos") e carnes vermelhas ("provavelmente carcinogênicas") na companhia de cigarro, bebidas alcoólicas, amianto e exposição solar apenas confirmou uma tendência que já vinha ficando evidente nos últimos anos: a comida é o novo tabaco.

Da mesma forma como as campanhas antitabagistas conseguiram transformar leis e hábitos nos últimos 30 anos, estamos assistindo a uma acelerada mudança de cultura em relação ao que comemos - e principalmente ao que deixamos de comer. Do cardápio do McDonald's às festinhas de criança, passando pelo churrasco de domingo e o pão nosso de cada dia, essas mudanças já estão instaladas na nossa rotina. O espírito da época é fechar a boca e abrir os olhos: tem agrotóxico? entope as veias? destrói a natureza? maltrata os animais? é glúten-free?

Essa nova consciência em relação à comida pode estragar o apetite de alguns e limitar o cardápio de outros, mas não é de todo ruim. Saber é melhor do que não saber quando o assunto é saúde e preservação do planeta. Nesse sentido, não adianta ter nostalgia da inocência perdida porque é impossível voltar ao almoço de ontem. O problema é que os estudos sobre alimentos que causam doenças são muito menos conclusivos do que aqueles que demonstram, por exemplo, os malefícios do cigarro. 

Há muitas pesquisas, mas essa abundância de informações, muitas vezes contraditórias, acaba criando angústia e abrindo um enorme espaço para o sensacionalismo, a desinformação e até mesmo para uma espécie de mitologia em relação à comida, opondo veganos e carnívoros, naturebas e glutões, magrelas e rotundos, como se um lado encarasse o outro como uma turba de infiéis que deveria ser convertida o mais rápido possível.

Infiéis? Convertidos? No livro The Gluten Lie, lançado neste ano nos Estados Unidos, o estudioso de religiões Alan Levinovitz apanha essa conversa no ar e mostra que tem se tornado cada vez mais comum o uso de vocabulário moral ou religioso para falar de comida. Para o autor, muito da relação que as pessoas têm com a alimentação pode ser explicado através de padrões de pensamento religioso, e os argumentos para escolher comer carne três vezes por dia ou apenas alface costumam ser mais filosóficos ou éticos do que médicos ou científicos.

Pense nisso na hora de tentar convencer alguém a comer - ou deixar de comer - algo.

01 de novembro de 2015 | N° 18342 
CARPINEJAR

Maturidade ou indiferença

– Você é jovem e ainda viajará bastante, conhecerá o mundo, não deve adiar os seus sonhos por ninguém. – Gosto do jeito que é, não mudaria coisa alguma em você.


– Sou contra pagar a conta, pois dividir valoriza o seu trabalho.

– Não tenha pressa de se envolver, vamos devagar, seguindo o seu ritmo. A relação é uma construção.

– Já teve quantas histórias? Afinal, se você transa bem é consequência daquilo que já viveu.

– Hoje é melhor eu ficar sozinho para aumentar a saudade.

– Pode se abrir e me contar o que quiser, não há com que se preocupar. Antes de tudo, somos amigos

– Não precisamos nos encontrar todo dia, desejo que não perca a sua independência.

– Você está certa, como sempre.

– Estou passando por uma fase de autoconhecimento e você tem sido extremamente compreensiva.

– Beba com as amigas, vá a festas, a sua felicidade vem em primeiro lugar.

– Eu entendo o que você sente, somos muito parecidos.

– Não quero que sacrifique a sua liberdade por mim.

– Ciúme é burrice, feito para quem busca mandar no outro.

– Estarei aqui quando precisar.

– Tem todo o meu apoio.

– Você é muito importante para mim, não há necessidade de nenhuma prova.

– Sexo não é tudo, há tanto numa relação para se aproveitar.

– Estava escrevendo para você quando me escreveu.

– Você não me sai do pensamento.

– Não ligo para a beleza, eu presto atenção na autenticidade das pessoas.

– Nossa, como você me aceita!, nunca encontrei um homem tão seguro, independente, maduro, compreensivo, equilibrado, calmo, esclarecido, nem um pouco possessivo, capaz de me incentivar sem nenhum egoísmo, sem nenhuma pressão.

(O que ela não sabe é que ele só é assim porque não está apaixonado.)

01 de novembro de 2015 | N° 18342
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Machismo na cozinha,


Agressões virtuais como as sofridas pela menina Valentina alimentam a atmosfera de violência sexual e a cultura do abuso

Valentina é uma menina que ganhou notoriedade pelo programa MasterChef Júnior. Ela tem a aparência de sua idade, 12 anos. Veste-se de forma adequada, sua fala e expressões são as de uma púbere comum. É graciosa, como muitas meninas nessa fase. Mas o protagonismo que ganhou deve-se a manifestações agressivas de cunho sexual de que foi vítima na internet. A questão é: o que fez uma garota, participante de um programa de culinária, ser alvo dessas agressões? Se alguém conseguiu ver nela qualquer tipo de insinuação, essa pessoa é um prodígio de desconhecimento de si, afinal, toma como de fora o que lhe brota de dentro.

Certos homens, por uma insegurança básica de sua masculinidade, acreditam que toda e qualquer exposição feminina que existe, ou que eles supõem que exista, como nesse caso, é para lhes provocar. Como se elas estivessem apenas esperando o seu olhar. Uma vez que se acreditaram provocados, devem agir, demonstrar sua macheza, mostrar de que falta de fibra são feitos. É uma típica atitude erotomaníaca, no sentido de projetar seu desejo e suas fantasias no outro. 

Frente a esse tipo de atitude, de sentirem-se convocados a uma cena que não lhes diz respeito, temos duas possibilidades: os primeiros não necessariamente são abusadores reais, ficam fantasiando e agindo nas sombras, na internet, por exemplo. As redes sociais são o paraíso para os covardes, desse e de todos os tipos, lá não há uma responsabilização direta sobre as agressões. E no espaço virtual começa e termina sua ação constrangedora. Seu dano não é pequeno porque cria uma atmosfera de violência sexual, uma cultura do abuso.

Mas vamos aos piores, o abusadores, os pedófilos. Eles não fazem proselitismo, não latem, eles mordem, por isso são quietos. O que apreciam é a ingenuidade da vítima. Seu gozo necessita dessa assimetria de posições, não é só de força física e de idade, mas principalmente de experiência. Eles querem sentir-se como mestres, iniciadores, a inocência e a surpresa da vítima aumentam-lhes o efeito prazeroso: quanto mais frágil seu objeto, maior o gozo. 

Arriscam, em termos legais, para não arriscar-se onde se sentem realmente frágeis: na entrega erótica, não têm peito de enfrentar alguém em pé de igualdade. A escolha de objeto diz muito de nós, pois há uma certa identificação com o parceiro. Por isso pode-se dizer que o abusador procura parceiros com idade na qual parou sua maturidade sexual. A sexualidade adulta põe a maioria dos pedófilos a correr, pois ali são eles os fracos e impotentes que sua equação sexual particular requer.

No episódio desta semana, Valentina apareceu bem menos, suas intervenções foram reduzidas sob o impacto da polêmica. A lógica de que se Valentina não estivesse na TV nada disso aconteceria é a mesma da burca. Esse tipo de cerceamento da circulação social de meninas e mulheres pressupõe que sua presença produz uma inevitável e incontrolável mobilização do desejo masculino. Na sua selvageria autocomplacente, homens exigem que as mulheres fiquem presas para não serem perturbadas. Promovem o exibicionismo da macheza por temor dos efeitos impactantes que o corpo feminino lhes produz. Esse tipo de agressor tem medo das mulheres e reage com a violência das feras acuadas.

Talvez a televisão, assim como a internet, seja uma forma de exposição forte para alguém pequeno, porém, as crianças gostam de ver-se protagonistas de suas atrações. Seria triste se a televisão só mostrasse adultos. É claro que os critérios têm de ser rigorosos, mas já tivemos muitas experiências de exposição erótica de adolescentes no passado da TV, e MasterChef Júnior está longe de ser uma delas.

O programa de que Valentina participa não é como os realities shows da versão adulta, onde a humilhação e a concorrência ao estilo dedo no olho parece ser parte integrante do show. A versão mirim é adequada à infância, com mais carinho e elogios do que outras coisas. Não classificaria o programa como educativo, mas ele coloca questões sobre como criamos nossos filhos. A ideia de proteção da infância é correta, mas muitas vezes exageramos na dose, deixando as crianças fora das experiências da vida, meros espectadores do mundo adulto.

Crianças na cozinha, sempre que supervisionadas, me parece uma grande ideia. A comida deixa de ser mágica, elas descobrem o esforço requerido. A arte culinária pede boa dose de concentração, uma sincronização da inteligência motora com a intuição, com a percepção sensorial, é preciso pensar quantidades e tempos de preparo, enfim, não é uma ciência fácil. E deve ser bem mais fácil ensinar química, física e biologia para quem já pilotou um laboratório simples, como a cozinha, do que para quem nunca entrou nela.

A culinária entrou na moda quando a classe média, incluindo os homens, teve que cozinhar. Enquanto era coisa de empregados e mulheres, foi tratada como algo menor. Só que agora as mulheres abandonaram a imposta vocação unívoca para as panelas e, por causa das legislações trabalhistas, este ofício tornou-se oneroso. A consequência, ótima aliás, é que a alienação culinária é menor entre os adultos mais abastados – como todos têm que se virar um pouco no fogão, cozinhar tornou-se chique.

Na ocupação da cozinha por homens e crianças encontramos a inversão do machismo que confina a feminilidade à vida privada. Elas saíram, eles entraram. As crianças, por sua vez, conscientizadas de que a alimentação é algo no qual se pode ser ativo, deixam de comer como quem mama, o que se lhe puser na boca. Assim, a obesidade e as doenças decorrentes da alienação do ato de comer certamente diminuirão. Essas condutas incivilizadas não conseguirão reconduzir as mulheres a serem escravas de cama e mesa, nem as crianças a seres amedrontados e passivos. Vivemos um momento de reação a essas conquistas, mas elas são irreversíveis.

Psicanalista*


01 de novembro de 2015 | N° 18342 
ANTONIO PRATA

#primeiroassedio


Ninguém sabe ao certo quantas mulheres são estupradas, todos os anos, no Brasil. Segundo o 8° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no fim de 2014, 50.224 ocorrências foram relatadas à polícia, em 2013. O problema é que só uma pequena parcela das vítimas deste crime busca a polícia: estudo do Ipea (goo.gl/4s4OGB) estima que em 2013 aconteceram, na verdade, 527 mil estupros. Também de acordo com o Ipea, 70% das vítimas são crianças e adolescentes. Mais da metade tem menos de 13 anos. Mais de dois terços dos agressores são familiares, amigos ou conhecidos das vítimas.

Um crime de tal forma disseminado em nossa sociedade não se perpetuaria impune e silencioso sem o machismo amplo, geral e irrestrito que reina por estes costados. Eis a razão para que, de tempos para cá, muitas mulheres venham advogando tolerância zero com cantadas de rua, assovios e aquela chupada grotesca – “Sfffrrrrrrrr” – de quem tá tentando tirar carne dos dentes sem o auxílio de um fio dental. 

É evidente que quem assovia para uma mulher não comete ato equiparável ao estupro, mas é o caldo de cultura do “fiu-fiu” que arruma a cama para o abuso do titio – e do padrasto, do pai, do chefe, do serial-encoxador de transporte público, do covarde anônimo num terreno baldio. O estupro é apenas o ato mais extremado nascido da convicção de que qualquer manifestação do desejo masculino deve prevalecer sobre o incômodo (ou horror) que ele possa causar às mulheres.

Tal convicção explica por que, no dia 20 de outubro, durante a exibição do MasterChef Junior, alguns tuiteiros se sentiram à vontade para divulgar ao mundo piadas de cunho sexual com uma das participantes do programa, de 12 anos. Se, com todo mundo olhando, temos o desplante de rir imaginando a violação de uma menina de 12 anos, o que não fazemos quando não há ninguém por perto?

A hashtag #primeiroassedio, criada pelas feministas do grupo Think Olga, em resposta aos tuiteiros do MasterChef, respondeu dolorosa e corajosamente à pergunta. Em poucos dias, a hashtag fez surgir nas redes sociais mais de cem mil relatos de mulheres sobre abusos sofridos na infância e na adolescência, escancarando a realidade dantesca que as meninas brasileiras sempre enfrentaram em silêncio. Desde então, minha timeline se transformou num bizarro patchwork de amigas, parentes e colegas sendo abusadas, de todas as maneiras, aos sete, nove, doze anos, por tios, amigos dos pais, vizinhos, desconhecidos. Não tinha ideia de que a situação era tão grave, nem tão próxima.

Mais assustador que os relatos no #primeiroassedio, os comentários no Masterchef e os dados do primeiro parágrafo, talvez só o fato de que a maior indignação em torno da violência contra a mulher, nos últimos tempos, tenha sido o tema cair na prova do Enem. Neste país de meio milhão de estupros, parece haver mais preocupação em atacar o nosso incipiente feminismo do que em iluminar as contradições do nosso torpe patriarcalismo. 

Preocupação, aliás, absolutamente desnecessária, pois luminares da civilização como Cunha, Feliciano e Bolsonaro estão conseguindo reverter, em alguns meses, as poucas conquistas das últimas décadas, logrando preservar, assim, as bases da tradicional família brasileira – estupro incluído.

RUTH DE AQUINO
30/10/2015 - 20h17 - Atualizado 30/10/2015 20h17

Arma, para que te quero?


O “Estatuto do Armamento” fere nosso futuro. Que a sociedade reaja e políticos de bem o vetem

A bancada da bala no Congresso planeja um crime monstruoso contra corações e mentes no Brasil. Ao facilitar a compra, a posse, o porte e o uso de armas de fogo em grande escala, um bando de políticos sem compromisso com a vida humana aprovou na Câmara um texto que nada tem a ver com paz, segurança ou desarme. O texto é um “Estatuto do Armamento” para tornar o Brasil um país de caubóis dispostos a matar ou morrer.

Quais são as mudanças mais clamorosas? O registro da primeira arma passa a ser gratuito e o registro da segunda arma passa a ser mais barato. Irônica promoção, num país com recordes de homicídios. Armas passam a ser vendidas para maiores de 21 anos (e não 25). A posse de armas passa a ser definitiva (revoga-se a necessidade de revalidá-la a cada três anos). O porte, que precisava ser renovado a cada três anos, passa a ser válido por dez anos. A taxa inicial de porte, que era de R$ 1.000, cai para R$ 300. E assim temos a grande liquidação – de armas e de vidas. Corram enquanto podem.

Mais mudanças? O texto aprovado pela “comissão especial” da Câmara amplia os locais permitidos de posse e uso de armas. O que se chamava de “casa” passa a ser “qualquer compartimento privado onde alguém exerce profissão ou atividade, assim compreendidos escritórios, consultórios”. Fico imaginando empresas com funcionários armados no refeitório, no banheiro, nas instalações comuns. Tudo legal. É a expressão acabada de um pesadelo, um filme de horror.

E quem pode comprar e usar armas? No Estatuto do Desarmamento atual, ninguém que tenha algum antecedente criminal ou responda a inquérito policial e a processo criminal. No texto da bancada da bala, que “flexibiliza” o Estatuto, só os já condenados por crimes dolosos são impedidos de comprar arma. O projeto libera as armas para quem estiver sob investigação ou processo criminal. Não dá!

Isso tudo soa como escárnio num país com cerca de 53 mil assassinatos por ano, 143 assassinatos por dia, seis assassinatos por hora. Em cada 100 mil habitantes, o índice no Brasil é de quase 26 assassinatos por habitante. A Organização Mundial da Saúde considera “nível de epidemia” uma taxa de mais de dez assassinatos por 100 mil habitantes. Segundo a OMS, o Brasil é o país com maior número de homicídios no mundo. O Estatuto do Desarmamento poupou milhares de vidas, segundo o Mapa da Violência de 2015, com base em dados oficiais. E tudo isso agora vai bala abaixo? Dos deputados que votaram pelas mudanças, 11 foram financiados pela indústria de armas e munições, segundo o Instituto Sou da Paz.

“É um retrocesso”, disse o secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame. “O argumento de que se deve armar a população porque a segurança não faz seu trabalho é uma desculpa míope. Já imaginou as pessoas armadas nas ruas, os parlamentares, os agentes que cuidam de crianças e jovens, os taxistas e os motoristas de caminhão? Essa energia do Congresso deveria ser canalizada para o governo federal ajudar a desarmar o bandido, e não para manter o bandido armado e armar a sociedade.”

Como o texto ainda precisa ser aprovado em plenário e no Senado para entrar em vigor, espera-se que a sociedade reaja e que políticos de bem vetem esse monstrengo.

Parece óbvio, parece fácil. Mas não é. Faz tempo que se urde essa conspiração no Congresso, alimentada pelo lobby de armamentos, para transformar o Brasil numa versão sul-americana dos Estados Unidos, onde massacres enlutam famílias e impelem o presidente Barack Obama a brigar – sem sucesso – contra a venda indiscriminada de armas.

Armas exercem fascínio sobretudo nos homens, não nas mulheres. Entendo que exímios atiradores se achem no direito de defender a si próprios e a suas famílias em sociedades violentas. Mas eles são exceção e não precisam de mudanças na lei para se armar. É um grave erro popularizar e baratear armas de fogo. É uma irresponsabilidade induzir a população a achar que armas salvam vidas e servem para legítima defesa. A realidade é oposta: a posse de uma arma aumenta o risco de um “cidadão de bem” ser morto por um profissional do crime.

É uma inversão de significados e valores, que não ajuda em nada a educação das novas gerações. Ao facilitar compra, posse, porte e uso de armas, esse arremedo de lei encoraja uma população armada e amadora a tentar fazer justiça pelas próprias mãos. Contribui para que brigas triviais de rua, no bar ou em casa acabem em morte. Aumenta o risco de acidentes trágicos domésticos ou escolares com crianças e adolescentes. Aumenta exponencialmente o risco de crimes passionais.

O “Estatuto do Armamento” ignora que a responsabilidade por manter a paz urbana deve ser delegada unicamente às forças de segurança. Exime assim em parte os governos por seus fracassos na política de segurança pública. Esse estatuto fere de morte nosso futuro. Não passará.



31 de outubro de 2015 | N° 18341
ARTIGOS ZH - NEWTON LUIZ TERRA*

PORTO ALEGRE: CIDADE AMIGA DO IDOSO? 



Foi com satisfação e alguma surpresa que li, na Zero Hora de 23 de outubro, que Porto Alegre recebeu da Organização Mundial da Saúde (OMS) o título de Cidade Amiga do Idoso. Cidade amiga do idoso é aquela que adapta suas estruturas e serviços para que fiquem mais acessíveis aos idosos com diferentes necessidades e capacidades. Bem como estimula o envelhecimento ativo ao criar condições de saúde, participação e segurança com o objetivo de reforçar a qualidade de vida das pessoas à medida que envelhecem. 

Em trabalho realizado em 33 cidades de 22 países, foi solicitado a aproximadamente 1,5 mil idosos que apontassem os aspectos positivos e os obstáculos que eles encontravam nas cidades em que viviam em relação a oito quesitos (prédios públicos e espaços abertos, transporte, moradia, participação social, respeito e inclusão social, participação cívica e emprego, comunicação e informação, apoio comunitário e serviços de saúde). Os problemas, as preocupações e as sugestões que foram expressos pelos idosos foram complementados pelas informações de 750 cuidadores de idosos e/ou prestadores de serviços.

A partir dessas consultas, realizadas no mundo todo, a OMS identificou as característicaschave de uma cidade amiga do idoso e lançou, em junho de 2005, o projeto Cidade Amiga do Idoso.

Em uma cidade amiga do idoso, as políticas, os serviços e as estruturas apoiam as pessoas idosas e as ajudam a envelhecer com dignidade. Será que nossa capital efetivamente ostenta essas características?

O reconhecimento pela OMS é um fato auspicioso e deve servir como motivação para que façamos uma avaliação dos quesitos analisados e que os idosos de Porto Alegre cobrem e se envolvam como parceiros dos órgãos governamentais e participem na implementação de projetos de melhoria para a sua cidade. Então, quando alcançarmos esse objetivo e encontrarmos os idosos efetivamente participando da vida social, desfrutando as belezas de nossa cidade, teremos conquistado o melhor dos títulos. Conseguir esse resultado será motivo de nos rejubilarmos e poderemos dizer que esta façanha pode servir de modelo a toda terra.

*Diretor do Instituto de Geriatria e Gerontologia da PUCRS


31 de outubro de 2015 | N° 18341
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

RETAGUARDADE AFETO


Impossível consertar se as coisas começam tão mal. No máximo, um remendo precário e toca a vida adiante.

Quando lhe chamaram de Alex, esse era todo o nome que tinha. Como mais um filho indesejado, certamente não teria escolhido nascer. Não daquele jeito. Se por pressa de se verem livres do incômodo ou por rejeição, ele desembarcou sem consulta no final do quinto mês de gestação e, para não deixar dúvida do mal amado que era, foi abandonado na rua. Ter sido colocado na tampa de um contêiner de lixo foi o tênue sinal de preocupação para que fosse visto logo e, se algum anjo estivesse atento, ainda com vida.

Foi levado a um hospital público onde fez uma parada cardíaca logo na entrada. Reanimado, aquecido e alimentado, permaneceu entre a vida e a morte durante várias semanas, sobrevivendo a uma seleção natural inacreditável. Com o passar dos meses, ficou evidente que a prematuridade, o pós-parto desprotegido e as complicações infecciosas que decorreram disso tinham deixado como sequela um retardo do desenvolvimento motor e cognitivo. A busca pela mãe resultou inútil e, depois de um ano de internação, quando alcançou condições de alta hospitalar, foi levado para uma casa de passagem, onde eram encaminhadas as primeiras tentativas de adoção, antes de as crianças serem levadas para os orfanatos.

A Iolanda, empregada doméstica e mãe solteira de dois filhos pequenos, era voluntária nesta casa e, várias vezes, preparou o Alex junto a outros coleguinhas de abandono para a inspeção de casais ansiosos por escolher os seus filhos adotivos.

Tantas vezes o ritual se repetiu, e outras tantas ele foi rejeitado que, depois de alguns meses, todos tinham entendido que o Alex nunca seria selecionado, apesar da carinha sorridente e dos bracinhos sempre estendidos em direção a qualquer estranho que significasse uma remota possibilidade de um colo.

A comemoração do terceiro aniversário do Alex foi um dia inesquecivelmente triste para todos, menos para ele, que estava animadíssimo com a agitação da festa porque ignorava que, atingida esta idade sem adoção à vista, ele devia ser levado no dia seguinte para o lar dos órfãos. Os dois anos de convívio e a afeição que o grupo desenvolvera pelo Alex explicavam as lágrimas disfarçadas de emoção que rodeavam a mesa dos doces e escaparam do controle quando várias voluntárias acorreram para ajudar o sopro fraco do Alex, insuficiente para apagar as três velinhas.

Logo depois, ele começou a circular pelo salão, de colo em colo, sem saber que cada abraço era uma despedida.

E, então, ele finalmente chegou aos braços da Iolanda. Ela, a única que não derramara uma lágrima, e ele, batendo palmas sem nenhum cuidado em dissimular a predileção. Depois de uma sessão de beijos naquela bochecha que o riso desnivelava um pouco pela paralisa facial, a Iolanda solenemente anunciou: “Meninas, arrumem a sacola com as roupas do Alex, porque ele vai pra casa comigo. Ele nasceu na miséria, vai se habituar a dividir a pobreza com a gente!”.


31 de outubro de 2015 | N° 18341 
DAVID COIMBRA

Quem perde na briga entre esquerda e direita

Entrevistei o Brizola umas 10 vezes. Em quase todas, ele disse, acerca da discussão sobre a reforma agrária no Brasil: “A questão da reforma agrária precisa ser desideologizada”.

Escandia as sílabas ao pronunciar essa palavra pedregosa, de-si-de-o-lo-gi-za-da.

Ficava pensando: o Brizola do socialismo moreno criticando as ideologias... É que ele era mais prático do que idealista. Sabia que, quando alguém tenta solucionar um problema através da ideologia, torna a solução quase impossível. Porque a questão vira causa e a causa vira luta e não há como lutar se não houver inimigo. Você precisa lutar CONTRA alguém.

A reforma agrária não foi desideologizada no Brasil. Ao contrário. Não é por acaso que o MST é chamado de “exército” pelo ex-presidente Lula. Hoje, se você der terra a todos os sem-terra, você acha que acabaria o MST? Claro que não. O MST faria o que já faz: recrutaria nas periferias das cidades os seus novos “soldados”, porque a ideologia, além de dar sentido à vida, também pode ser um bom negócio.

Quanto mais ideologizada é uma discussão, mais inócua ela se torna. Para cada Maria do Rosário haverá um Jair Bolsonaro, para cada Marco Feliciano haverá um Jean Wyllys, e nada jamais irá a lugar algum.

Você decerto vê isso no seu dia a dia. Você não resolve nenhuma pendência brigando, resolve ponderando. Cada lado cede um pouco, e todos convivem em paz com suas diferenças. Esse o ideal.

No Brasil, questões humanitárias tornaram-se questões amargamente ideológicas. Não existem, por acaso, homossexuais de direita, que querem ter seus direitos respeitados? É óbvio que sim. Tornar a defesa dos direitos dos homossexuais uma causa exclusiva da esquerda reduz a importância da causa. E atrai opositores encarniçados.

Escrevo isso a propósito do Projeto de Lei 5.069, que Eduardo Cunha conseguiu fazer ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Esse projeto limita as possibilidades do chamado “aborto legal”. Atinge, diretamente, as mulheres da faixa de renda mais baixa do país. Elas são as maiores vítimas de violência sexual e elas não têm recursos para pagar caríssimas clínicas clandestinas de aborto. O que elas farão, no caso de carregarem o indesejado fruto de um estupro? Tentarão retirá-lo por conta própria.

O aborto legal, em caso de violência sexual, é caso de saúde pública, não é caso de ideologia. Eduardo Cunha e outros deputados conservadores, porém, estão tratando esse tema, e outros tantos, como cavalo de batalha contra seus inimigos da esquerda. Quem vai sair perdendo, nessa disputa? As mulheres pobres e indefesas das periferias do Brasil.

Os direitos dos homossexuais, a regulação do uso das drogas, o porte de armas, a violência contra a mulher, a violência em geral, a reforma agrária, a educação, a saúde, o aborto e várias outras questões importantes do Brasil precisam de debates feitos com inteligência, não com emoção. Não são bandeiras da esquerda nem da direita. São problemas a serem resolvidos com bom senso.

Pessoalmente, nessa questão específica do aborto, penso que a grávida deveria ter o direito de decidir se quer ou não fazê-lo, até porque ninguém, a priori, sente vontade de se submeter a essa operação. É algo que se faz por necessidade. 

Mas essa é uma discussão longa, cheia de vírgulas éticas e morais. Agora, se você prefere ser como o Brizola, se você quer ignorar a parte ideológica para entrar na prática, peço-lhe para abrir um mapa-múndi na sua frente e marcar os países onde o aborto é permitido com uma cor e aqueles em que não é permitido com outra cor. Você verá a diferença entre uns e outros. O que, talvez, sirva para alguma reflexão.



31 de outubro de 2015 | N° 18341 
CLÁUDIA LAITANO

A máquina de fazer feministas


Se toda obra-prima reflete a alma do artista, o projeto de lei 5.069/13, de autoria do deputado Eduardo Cunha, espelha seu caráter, seu pensamento e sua contribuição para a construção do Brasil do futuro – que vem a ser igualzinho ao do passado, só que um pouco pior.

Em linhas gerais, o projeto aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara na semana passada torna ainda mais humilhante e penoso o percurso de mulheres vítimas de estupro que buscam o caminho do aborto legal. E quem são elas? Meninas de 12 ou 13 anos, estupradas por homens da família ou conhecidos, e muitas vezes obrigadas a deixar a escola depois de engravidar – repetindo a sina de mães e avós iletradas. 

São mães com filhos pequenos atacadas na rua à noite, voltando do trabalho, porque a rua não oferece segurança e o transporte não é confiável. São jovens começando a faculdade ou um emprego novo, cheias de planos e sonhos para o futuro. Mulheres como eu, minha filha, minhas amigas, minhas vizinhas, minhas colegas de trabalho, com uma diferença essencial: ao contrário de nós, mulheres de classe média, seu destino e suas vidas dependem do atendimento oferecido pelo Estado. Um atendimento já precário que o projeto de Eduardo Cunha torna ainda pior e mais difícil.

Penalizar mulheres pobres vítimas de violência sexual, além de retrocesso em uma legislação já atrasada em relação a outros países, demonstra um nível de perversidade e inconsequência que mesmo no Brasil parece intolerável. Mas o que instala esse projeto no plano do escárnio público é o fato de essa monstruosidade vir empacotada em um discurso moralista que não se sustenta nem mesmo como farsa. 

Não estamos lidando aqui com um movimento conservador genuíno, do qual poderíamos talvez republicanamente discordar, mas com políticos corruptos que se beneficiam da fé alheia vendendo a ideia de que é legítimo impor uma visão de mundo de viés religioso a um Estado laico. Ou seja: estamos debatendo moral com quem nem sequer entende o sentido da palavra.

No livro A Máquina de Fazer Espanhóis, do escritor português Valter Hugo Mãe, o narrador diz a certa altura que Portugal se transformou em uma máquina especializada em fazer seus habitantes quererem sair do país – uma “máquina de fazer espanhóis”, já que muitos emigram para a Espanha. Com o PL 5.069/13, que ultraja homens e mulheres igualmente, Cunha não vai nos fazer sair do Brasil. Mas pode, sem querer, ter conseguido inventar a máquina de fazer feministas.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015


30 de outubro de 2015 | N° 18340
EDITORIAIS ZH

UM CONGRESSO CONSTRANGIDO



As manobras regimentais do presidente da Câmara para se manter no cargo, o uso do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff como moeda de chantagem política e o comprometimento de parlamentares com as fraudes da Operação Lava-Jato colocam o Congresso Nacional na condição de poder sob suspeita. 

Por mais que pareçam esgotados os absurdos cometidos, o parlamento acaba por renovar o acervo de notícias negativas. Como aconteceu nesta semana, quando o presidente da Casa anunciou para o plenário que desistiu do rito que ele mesmo havia previsto no caso de encaminhamento de eventual processo de impedimento da presidente da República.

O senhor Eduardo Cunha não desistiu dos procedimentos por ter admitido que o chamado manual do impeachment, já barrado por liminar do Supremo, não tem sustentação legal. O gesto do deputado é mais um no sentido de tentar agradar aos que podem poupá-lo na Comissão de Ética da Câmara, onde deve ser julgado por ter mentido que não tinha contas secretas no Exterior. 

Depois de cortejar e ter sido cortejado pela oposição, Cunha investe agora na cumplicidade com os governistas. Ao ser menos ameaçador na questão do impeachment, tenta dizer que possíveis algozes deveriam, em troca, fazer o mesmo.

A situação do protagonista do Congresso é tão constrangedora, que o deputado Jarbas Vasconcelos (PMDB) classificou-o recentemente como “um psicopata, sem legitimidade para conduzir o processo de impeachment”. É atividade pública rebaixada ao que tem de mais abominável, num momento em que os políticos em geral, em especial os pretendentes ao Palácio do Planalto, como mostram as pesquisas, têm o desprezo generalizado da maioria da população.


30 de outubro de 2015 | N° 18340
ARTIGOS - PAULO DE ARGOLLO MENDES*

O LOUCO E O TREM


Há cerca de dois séculos, um médico (Philippe Pinel) rompeu as correntes que amarravam os “loucos”, mostrando que não eram criminosos, mas doentes. Mas só nas últimas décadas a medicina alcançou avanços científicos capazes de, através de medicamentos, interromper o curso natural das doenças que, quase sempre, evoluíam para a cronificação e o retardamento mental.

Esses novos medicamentos reduziram a internação psiquiátrica a apenas duas situações: risco para a própria vida (suicídio) ou para a de outrem (homicídio). Aqueles que hoje adoecem dificilmente precisam ser internados e, quando o são, é por curtíssimo tempo (tanto que o SUS só paga 21 dias).

Fazer um movimento para tirar os “loucos” dos hospitais é hoje como fazer um movimento contra a poluição da maria-fumaça. A evolução extinguiu o trem a carvão, não é preciso fazer lei para impedir sua construção.

Ficaram, no entanto, os sequelados, aqueles que tiveram a doença mental antes que se desenvolvessem drogas para curá-los (ou, ao menos, mantê- los sob controle ambulatorial, como um diabético). Esses são os chamados “crônicos ou asilares”. Pessoas que não representam risco, mas não são capazes de cuidar de si mesmas.

O dito Movimento Antimanicomial deu aos asilares o “direito cidadão” de serem expulsos de suas camas (quantos pularam de volta, para dentro, os muros do São Pedro) e transformados em moradores de rua, “finalmente livres”!

O número de enfermos realmente diminuiu. Sem noção do que faziam, muitos foram atropelados. Outros, sem agasalho ou comida, morreram de pneumonia ou tuberculose. E entraram para as estatísticas como acidentes ou mortes por causa natural, não como assassinatos.

O preconceito contra o doente mental permanece. É permitido construir hospitais especializados em cardiologia ou em pneumologia, mas não em psiquiatria. A velha e discriminatória Lei Antimanicomial ainda não foi abolida. A recente Parada do Orgulho Louco mostra como ainda nos falta olhar com afeto e respeito a esses indivíduos e parar de tirar proveito (inclusive eleitoral) de suas enfermidades.

Médico, presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul*

30 de outubro de 2015 | N° 18340 
MOISÉS MENDES

A qarta


Publico abaixo carta escrita à mão, deixada na portaria da Zero. Seu Jorge, da recepção, me disse que foi entregue pelo seu Eusébio em um envelope pardo. Mais não sei. Eis a íntegra:

Antecipo-me a outras considerações gerais e apresento-me como Qorpo-Santo, nascido José Joaquim de Campos Leão. Esta qarta (peço que se publique assim mesmo, com “q”) tem o princípio de expressar sentimentos sobre os episódios decorridos da recente passeata do Orgulho Louco no Alegrete.

Nasci em Triunfo em 1829 e morri em Porto Alegre em 1883. Sou o autor da famosa Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade e sei que alguns me consideram o louco mais famoso do Rio Grande. Antes de ser dado como Santo, muito antes de brilhar em meu cérebro um raio de inteligência e de me considerarem doente mental, morei no Alegrete, de 1857 a 1861, onde fui subdelegado de polícia e vereador e criei um colégio, o Alegretense.

De modos que me sinto habilitado a raciocinar o que segue sobre o alvoroço em torno da passeata. Muitos devem ter dito: Qorpo Santo estaria lá, se ainda estivesse vivo. Pois saibam que eu estava.

Nenhuma cidade reúne quatro mil pessoas numa passeata de loucos, sem um espírito que a inspire.

Eu inspirei Alegrete!!! Fiquei sabendo que alguns não gostaram da passeata, que teria exposto loucos ao ridículo. Louco não teme o ridículo, o ridículo está na cabeça dos não loucos. O homem precisa relacionar o seu trabalho com o espiritual. Nossos corpos não são mais que os invólucros de espíritos.

Uns gozam a posse de muitas mulheres, como os sultões, e outros querem dinheiro. Os participantes do Orgulho Louco só querem a festa, a alegoria de poder dizer que louco precisa estar solto; louco confinado não cria, não pensa e não se diverte.

Ninguém é completamente feliz se não vive como deseja. Eu mesmo desejei escrever sem parar e em um mês comecei e finalizei oito peças. Oito!!!

Quem duvidar, que consulte os escritos, as falas e os atos do Aníbal Damasceno Ferreira, do Antônio Carlos de Sena, do Guilhermino Cesar e da Denise Espírito Santo (eu ainda me intrigo com isso, eu Qorpo, ela Espírito) e muitos outros. E quem quiser saber mais de mim e dos que se prezam como muito certos que leia Cães da Província, do Luiz Antonio de Assis Brasil. A arte contém verdades.

Todos têm lugar neste mundo de Nosso Senhôr Jezusqristo, e é muito especial o lugar dos que desfilam sem temer a própria loucura. Não se desdenha um desfile com quatro mil loucos, ou alguém pensa que havia gente certa nesse desfile do Alegrete?

Autorizo publicação. Saudações. Qorpo-Santo


30 de outubro de 2015 | N° 18340 
MARCOS PIANGERS

Peguei primeiro


Todas as Anas Paulas nasceram por volta dos anos 80. As Marianas e as Brunas, um pouquinho depois. Depois vieram Matheus e Thiagos, e esses agás já demonstravam uma tendência ao experimentalismo. Nos anos 90 a moda eram nomes italianos, como Enzo e Lorenzo. Os Luccas pipocaram nessa época. Todas as Sofias e Bernardos nasceram no começo dos anos 2000. Estávamos nostálgicos. Era o início de uma tendência de célebres Benícios e Joaquins. Benjamins e Franciscos. Nomes antigos, homenagens aos avós. Anita e Aurora. Nomes com cara de anos 50.

Não estou dizendo que vamos voltar no tempo e começar a batizar nossos bebês de Bartolomeu ou Zulmira. Um bebê chamado Zulmira já nasce com 70 anos. Apesar de serem nomes lindos. Acredito que a tendência não vai tão longe. Atualmente, sinto uma alta de Theos e Yasmins. E Isabellas com dois eles. E aí está o cuidado que devemos tomar. Com as tendências, vem os nomes repetidos. Inevitavelmente, você vai encontrar outras crianças com o mesmo nome. Mesmo que seja um nome antigo. Mesmo que tenha agá e dois eles. Mesmo que seja uma homenagem pra sua avó. Mesmo que seja Zulmira.

Existe uma regra não declarada que é a regra do “peguei primeiro!”. Ao decidir o nome da criança, os pais devem anunciar alto e rapidamente para todos os chegados, para que não ocorra o terrível constrangimento do nome repetido. É importante que, quando anunciado o nome escolhido, seja sempre repetida a informação várias vezes. No trabalho, no condomínio, no churrasco de família, sempre de forma clara e em alto volume: “É João Pedro! João Pedro! Esse é meu e ninguém tasca!”. Sobram João Paulo, João Miguel, João Vitor, João Gabriel. Mas João Pedro já tem dono.

Pais ficam magoados com outros pais que escolhem nomes parecidos, mesmo que a grafia seja minimamente diferente. Vizinhas que ficaram grávidas ao mesmo tempo e colocaram o nome de Vitor e Victor, eventualmente, passarão a se odiar. “Mas o meu é sem cê!”, dirá a vizinha mal-intencionada, se fazendo de inocente. 

O migué da letrinha diferente não vale. Vitor e Victor é quase a mesma coisa, me desculpe. Eloisa e Heloisa, também. Sofia e Sophia, também. Isabela já anula qualquer possibilidade de outra mãe escolher Isabella, por exemplo. E, eu diria, até Isabeli. Não adianta tentar usar letrinhas pra ludibriar a mãe que escolheu o nome primeiro.

Como diria qualquer Zulmira: respeito é bom e todo mundo gosta.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015



29 de outubro de 2015 | N° 18339
EDITORIAIS

MANOBRA CORPORATIVISTA


A manobra dos parlamentares gaúchos para livrar o deputado Diógenes Ba- seggio (PDT) da cassação, depois da comprovação das irregularidades por ele cometidas, reforça a suspeita de que o investigado pode ter cometido delitos que não são tão raros. A sensação generalizada é de que, ao reter parte dos salários de servidores do gabinete e contratar funcionários fantasmas, o deputado pode ter aderido a uma prática que não tem a marca da excepcionalidade. 

Isso não significa que todos os integrantes da Assembleia cometam irregularidades e nem mesmo que façam parte de uma maioria. Mas não há como não se indignar com a decisão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

A comissão encarregada de levar adiante o processo contra o parlamentar, acusado de ser pelo menos conivente com crimes cometidos por assessores, contrariou as expectativas de quem esperava uma punição exemplar. 

O caso transformou-se num imbróglio legal. Depende agora de outro relator, que já antecipou seu entendimento. Ciro Simoni, do mesmo partido do investigado, informou que seu voto não será pela cassação, mas pela suspensão por 90 dias. Mais uma vez, o corporativismo prevalece, certamente porque o político está sendo julgado por colegas constrangidos com a tarefa assumida.

O constrangimento maior é o percebido pela sociedade. Deputados que decidem poupar o mandato do colega flagrado em delito não podem se sentir imunes à suspeita de que compartilham de atitudes semelhantes. Se não for assim, ainda haverá tempo de reverter a frustração com a decisão da CCJ. Não é possível que o parlamento gaúcho continue abrigando tanta hipocrisia.


TORNEIRAS FICARÃO FECHADAS PARA O PSI


As linhas do Programa de Sustentação do Investimento (PSI) agrícola estão com prazo de validade por vencer e, em alguns casos, já vencido. Aos produtores interessados em usar o financiamento, o tempo é curto: termina amanhã, no sistema convencional. E acabou na última segunda para o sistema simplificado.

Criadas para fazer frente à crise econômica internacional de 2008, as linhas de financiamento do PSI foram fundamentais para o agronegócio. Com juros subsidiados, permitiram ao produtor fazer investimentos em tecnologia. Mais do que isso, impulsionaram o setor de máquinas e implementos, que engatou um ritmo acelerado, alcançando recordes de vendas.

Com a torneira de recursos fechando, a já delicada situação da indústria, que acumula queda de dois dígitos nos negócios em 2015, pode ficar ainda mais complicada. E o reflexo pode vir na forma de mais demissões.

Para se ter uma ideia, no Rio Grande do Sul, conforme projeção do Sindicato das Indústrias de Máquinas e Implementos Agrícolas (Simers), metade do faturamento nas empresas do segmento vem dos financiamentos do PSI.

– Com isso, fica só o financiamento do Moderfrota. Se o governo não colocar dinheiro nessa linha, será muito ruim para o setor – avalia Claudio Bier, presidente do Simers.

A razão para o encerramento do PSI antes do prazo previsto vem dos cortes de orçamento. Conforme o BNDES, o Conselho Monetário Nacional (CMN) reduziu em R$ 30,5 bilhões o limite de equalização do PSI. Com isso, o banco viu a cifra de R$ 50 bilhões disponíveis encolher para R$ 19,5 bilhões. E teve de redistribuir os novos números entre todas as áreas.

Quem sai perdendo com isso é justamente o setor que vem segurando as pontas da economia brasileira.

ADUBO NA EXPANSÃO

Mesmo com a retração da economia, a Yara segue apostando suas fichas no Brasil. Tampouco a queda de 5% nas vendas de fertilizantes prevista para o ano faz a empresa recuar na proposta de expansão a partir do Estado. O investimento de R$ 1 bilhão inclui a revitalização do complexo de Rio Grande, para ampliar a porta de entrada de insumos e produtos. Segundo Lair Hanzen, presidente da marca no Brasil, o projeto está em fase de aprovação. Falta só avistar a segurança necessária na tributação para acelerar. A posição oficial deve vir no começo de 2016:

– Continuamos apostando forte. Apesar de percalços no curto prazo, os planos se mantêm.

Hanzen foi o convidado especial do Tá Na Mesa que comemorou os 88 anos da Federasul. Veja ao lado trechos da entrevista do executivo. ADUBO NA EXPANSÃO

PRODUÇÃO DOLARIZADA

A agricultura brasileira é basicamente dolarizada. É assim com soja, café, algodão. Nesse sentido, a moeda americana valorizada é bom. Mas o dólar alto requer maior volume de dinheiro na hora de fazer investimentos. É preciso 60%, 70% mais de reais para plantar a mesma área. Essa primeira subida do dólar traz preocupação para o produtor, que tem produto ligado à moeda americana. Mas eles também têm receita dolarizada.

COMPETITIVIDADE

Os produtores cada vez mais profissionais vão travando o custo de produção. O Brasil nunca esteve tão competitivo. A soja no Mato Grosso, que é a mais cara do Brasil, está competindo com a de Ohio, a mais barata dos Estados Unidos. O RS nunca esteve tão competitivo.

DEPENDÊNCIA EXTERNA

No Brasil, importamos 70% dos fertilizantes. Nossa produção de nitrogênio vai demorar um pouco a crescer. Ainda importamos 80%. No fósforo, metade vem de fora. No cloreto de potássio, o Brasil produz só 5% do que precisa.

2015 X 2016

Os últimos números da Associação Nacional para Difusão de Adubos (Anda) mostram recuo nas vendas de 6% até setembro. Para 2015, a estimativa é de queda de 5%. Mas o business case do Brasil é muito bom. A agricultura vai continuar crescendo. Achamos que o mercado de fertilizantes deve voltar ao patamar normal em 2016.

SAI PARA LÁ,TIO SAM

Com a reaproximação dos Estados Unidos com Cuba, o Brasil quer marcar posição para não perder o espaço conquistado na ilha de Fidel, importante comprador do nosso arroz.

– Temos muito interesse nesse mercado. E a exportação é fundamental para manter o bom nível de preços – diz Francisco Schardong, presidente da Comissão de Arroz da Federação da Agricultura do Estado (Farsul).

A embaixadora de Cuba no Brasil, Marielena Ruiz Capote, participa de encontro hoje na Farsul.


NO RADAR

HOJE é o dia D para a definição acerca dos projetos de lei para o setor de leite. Reunião com representantes de entidades e da Secretaria da Agricultura está marcada e tenta costurar um acordo para que o projeto do Executivo seja apresentado em regime de urgência.

PARABÉNS DUPLO

Não foi só a aniversariante Federasul que ganhou os parabéns. Os agraciados com o prêmio Vencedores do Agronegócio receberam ontem o troféu Três Porteiras em sete categorias, além de três destaques especiais.

- Insumos: Simbiose, e destaque especial para a Dimicron

- Máquinas e Equipamentos: Agromac

- Produção Agropecuária: Pilecco Nobre Alimentos

- Agroindústria: Fábrica de Embutidos Borússia

- Distribuição: Ristorante Di Paolo Galetos e Grelhados

- Serviço de Apoio ao Agronegócio: Federação dos Clubes de Integração e Troca de Experiências

- Sustentabilidade Social: Silo verde

-Destaques especiais: Farsul, Fundesa e Ocergs

EM REUNIÃO NO MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO, EM BRASÍLIA, PARLAMENTARES GAÚCHOS REFORÇARAM A URGÊNCIA EM LIBERAR LINHA DE CRÉDITO ESPECIAL PARA PRODUTORES DE TABACO QUE TIVERAM PREJUÍZOS POR CAUSA DO GRANIZO. CONFORME O DEPUTADO LUIS CARLOS HEINZE (PP), O PREJUÍZO CHEGA A R$ 154 MILHÕES. O MINISTRO PATRUS ANANIAS PROMETEU ENCAMINHAR NOTA À FAZENDA SOBRE O ASSUNTO.



29 de outubro de 2015 | N° 18339 
DAVID COIMBRA

O amor à linguiça

Fiquei um pouco ressentido com essa história de que os embutidos dão câncer. É algo que preciso abordar, mas, antes de ir em frente, tenho de ressaltar que estou ciente dos riscos que corro, riscos que foram ignorados pela própria presidente da República. Eu, se fosse assessor da Dilma, teria sido pressuroso em lhe advertir, antes do seu famoso discurso de saudação à mandioca:

– Presidente, há certas palavras que, por si só, tiram a seriedade de qualquer manifestação, no nosso querido e irreverente Brasil.

A mandioca é uma delas. Bem como a linguiça, o salame e outros produtos com formato sugestivo.

Ocorre que, sim, sempre fui apreciador de embutidos. Meu arroz de china pobre, também conhecido como arroz com linguiça, tornou-se célebre nos anos 1990, em Porto Alegre. Eu morava num apartamento modesto, porém funcional, nos altos da Rua Portugal, e foram inúmeras as noites em que recebi amigos com uma olorosa travessa de arroz de china pobre, mais, é claro, cerveja branquinha, de tão gelada. Todos se repimparam à grande, e elogiaram meus dotes culinários, e uma ou duas moças que me eram caras sorriram com mais brandura para mim, terminado o jantar.

Você talvez diga que arroz com linguiça não é prato para ser oferecido a uma mulher que se anseie conquistar, mas uma vez ouvi a seguinte frase de uma jovem semideusa, enquanto ela tirava, com um decidido golpe de guardanapo, um pingo de molho de tomate que lhe tingia os lábios de gomo de bergamota:

– Isso foi muito, muito bom...

Ah! Primeiro a linguiça, depois o champanhe. Sim, senhor.

Meu cachorro-quente também ombreia com o cachorro-quente do Rosário, e a minha avó, a saudosa dona Dina, suprema cozinheira, fazia um prato de linguiça bem fininha com abóbora que, Jesus Cristo!, jamais provei iguaria semelhante, desde que ela se foi para um plano mais elevado, onde certamente se pode comer de tudo, beber de tudo e todos os sinais de wi-fi são liberados.

E tem o salame! E tem a mortadela, tão generosamente distribuída entre duas fatias de pão amigas nos eventos patrocinados pelo PT. O povo ama os embutidos, essa é a verdade.

E eu também.

Mas, olha, outro dia, andei tendo um câncer, e não duvido que tenha sido coisa da linguiça. Com o que, declaro agora, com pesar e circunstância, que renuncio aos embutidos.

Nunca mais salsichão com salada de batata como entrée dos churrascos na casa do Degô.

Nunca mais hot dogs, nem mesmo aqui, na terra das oportunidades, da liberdade e, bem, dos hot dogs.

Nunca mais salame e salamito, esses dois primos-irmãos que acompanharam fatias de pão francês que me foram servidas em antigos cafés da tarde, tipo de refeição extinto pelo açodo da vida moderna.

Nunca mais minha pièce de résistance, o inefável arroz de china pobre...

Nunca mais. Nunca mais.

Não sei como será viver num mundo sem a linguiça, sem a salsicha, sem nem o chouriço. O velho chouriço. Será um mundo mais saudável, é certo que será, e daqui a pouco lançarão embutidos light e inofensivos como um grão-de-bico, também disso sei, mas... Não seremos mais os mesmos. Paciência. Que a vida sem embutidos valha a pena ser vivida.


29 de outubro de 2015 | N° 18339 
MÁRIO CORSO

Vaidades

Quando os irmãos se dão, vão se entender toda a vida, quando se odeiam, nunca encontrarão a paz. Está é a triste sina, os meios-termos raramente comparecem. César e Augusto eram do primeiro grupo. Herdaram o nome do avô paterno, cada um a metade, e seguiram juntos como fossem um só nome, um só destino. No princípio, a idade não ajudou, tinham seis anos de diferença. Não brincaram na infância um com o outro, mas foi a única coisa que não partilharam. No colégio, César cuidava do caçula Augusto e cuidou dele até o fim da vida.

Reergueram a empresa familiar, casaram-se e tiveram filhos. Tudo seria feliz se os desmandos da vida não interviessem. Na meia-idade, um câncer arrancou César de Augusto. O caçula pensou que não pudesse seguir vivendo. Pela primeira vez, sentiu-se só. Perderam os pais, sofreram juntos e não fora fácil, mas agora, quem seria seu ombro?

No dia do velório, estava com a viúva e as sobrinhas. Ajudou a escolher o derradeiro terno. Na frente do guarda-roupa, foi tomado por uma sovinice. Sempre compartilharam roupas, os empréstimos de casacos, ternos e sapatos às vezes não voltavam ao dono original. Fazia parte da cumplicidade esse uso comum de roupas, tinham o mesmo tamanho e, de certa forma, era como se o partilhar lhes assegurasse uma proximidade que nunca estaria ausente.

Escolheu para sudário do irmão um terno que fora um erro. Era mal cortado, cor chamativa, fora de moda, enfim, aquela roupa que fica quadrada em qualquer um. Nunca entendeu como seu irmão, tão cioso da aparência, não se desfizera daquela porcaria. 

Mas, pensava ele pragmaticamente, pelo menos para isso serve. Sabia que nada do irmão herdaria senão as roupas. Perdera seu parceiro, mas esses objetos do falecido seriam seu consolo. Uma franja de amarga felicidade lhe percorreu quando pensou no seu armário duplicado.

O mais duro nos espólios são as roupas, difícil imaginá-las sem o corpo que se foi. Mas suspeito que preenchê-las teria sido a intenção de Augusto, fazer algo do irmão sobreviver através de suas vestes para retê-lo um pouco mais.

Na noite seguinte ao enterro, Augusto teve um pesadelo. Seu irmão lhe apareceu vestindo o terno horroroso e lhe disse: “Você me fez passar a eternidade dessa forma?”. Augusto entendeu seu erro imediatamente. Fora fiel ao irmão a vida inteira, mas por vaidade vacilou na última hora. 

Sem saber o que fazer, se desfez de todas as roupas, as do irmão e as suas. Começou a vestir-se despojadamente. Só usava roupas e sapatos informais e baratos. O mais humilde dos seus funcionários se vestia melhor. Disse que no começo foi duro, mas depois uma espécie de libertação. Só assim se sentia em paz com César.

Quando Augusto me contou sua história, a primeira frase foi de uma sabedoria que não devemos esquecer: “Nem a morte desativa a vaidade, melhor livrar-se dela em vida”.