quarta-feira, 19 de outubro de 2011



19 de outubro de 2011 | N° 16860
JOSÉ PEDRO GOULART


Além do Lilinho

Um dia minha filha, então com cinco anos, acordou muito preocupada com seu peixe, o Lilinho, que estava dormindo de uma maneira estranha (na verdade havia morrido). Foi então que a mãe dela e eu tomamos a decisão de substituir o peixinho por um outro, antes que ela notasse e ficasse muito triste. Publiquei essa história aqui em ZH há três anos, e agora ela virou um filme patrocinado, uma ação de conteúdo.

Muitas pessoas assistiram e gostaram, aceitaram o caráter simbólico do tema, algumas entretanto acharam que os pais tinham que aproveitar a hora e tratar do assunto da perda. Percebi no tom das críticas uma certa intolerância meio da hora a tudo e qualquer coisa que saia dos trilhos. Se isso vier da publicidade, então, nem se fala. Disso, entretanto, não quero falar, o que quero dizer vem a seguir. Falo menos por ciência do que por intuição.

Enquanto decorre, a infância é repleta de dúvidas, medos, ansiedades – o escuro, o desconhecido, a lógica ilógica dos adultos. Mas depois durante toda a vida haveremos de lembrar da infância como alguma coisa entre o paraíso e a felicidade plena. Por quê? Arrisco que é por causa da ilusão – a ilusão é condimento essencial da felicidade.

A ilusão é a realidade distorcida, ou seja, ficção; ou seja, mentira. Uma vez adultos conjugamos o cotidiano com imersões ficcionais: teatro, cinema, literatura – talvez numa busca do estado ilusório infantil. Essas coisas existem também para as crianças, mas a linha que divide o real e o imaginário muitas vezes não é definível para elas.

Cada nova responsabilidade para uma criança é uma subida num degrau do estado de consciência cuja escada leva para o final da infância: os primeiros aprendizados, os primeiros passos, a fralda substituída, a escola, a leitura. Por sua vez os pais precisam lidar com a responsabilidade da orientação; com a resistência e o receio da criança; e com suas próprias dúvidas. Qual a hora para cada assunto? Qual o momento para os mais cascudos? Não há resposta, não há manual. Tenho só suspeitas.

Suspeito que a alma da gente se forme quando se é criança – uma vez perdido esse tempo, não há como recuperá-lo. Qualquer trabalho, qualquer violência, e tratamento adulto “antes da hora”, embora tenham pesos e medidas diferentes, aumentam o risco de infelicidade no futuro. E não há regras disso ou daquilo – quem é que sabe?

Certas coisas não se ensinam, a gente é que aprende. Suspeito também que todos, em especial as crianças, conseguem reconhecer o amor mesmo quando escondido em abrandamentos da realidade.

“Teu avô virou estrelinha”, “a fadinha dos dentes veio à noite e levou teu dentinho”. Afinal, como disse o muito citado (e pouco lido) F. Nietzsche: “O que é feito por amor se realiza sempre além do bem e do mal”.

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