quinta-feira, 13 de outubro de 2011



13 de outubro de 2011 | N° 16854
CELSO GUTFREIND (INTERINO)


Olho vivo

Há quem prefira não problematizar a diminuição da visão para perto, que vem com a idade. Acolhe os óculos e sequer baixa a cabeça. Jamais diria “vista cansada”, pois sabe que um adjetivo pode pôr tudo a perder.

Também não precisa ser oftalmologista e saber que não há calendário para a perda. Irving Yalom, por exemplo, já tinha 48 anos, mas ele é um contador de histórias, e a verdade fica nebulosa na ficção.

Em geral, cansamos antes, mas, falando em história, tem uma popular que vai além da vista cansada. E a descreve como um aviso mortífero igual a rugas, cabelos brancos, dores articulares. Depois de juntar tudo isto no vivente, a morte chega e declara:

– Você foi avisado muitas vezes, só não viu porque não quis.

Também acho dispensável esta visão. Fazer o que com o aviso? Vestir o pijama, calçar os chinelos e esperar acompanhado da aposentadoria? Negar, andar de skate ou roller e quebrar o quadril? Comprar uma motocicleta dourada, namorar alguém 50 anos mais jovem, inscrever-se no Paris-Dacar?

Os olhos não precisam disso. A vida inteira continua no seu ritmo possível. E acesa. Com ou sem aviso, retomamos os dias, mas aqui pode recomeçar o imbróglio. Ele está além da vista cansada, porque há fôlego ainda. Está aquém do aviso macabro, porque há vida presente, a única, segundo Drummond.

Ora, o aviso é do futuro e, para muito filósofo batuta, o futuro nem existe. O caso é mesmo aqui e agora. Precisar de óculos para ver de perto é uma porcaria e não tem a ver com cansaço ou morte e sim com a dura vida cotidiana.

Por exemplo, nas refeições. É possível e até recomendável comer sem óculos, ninguém precisa ler uma batata frita ou decifrar um arroz. O garfo experiente os acerta – não é sopa –, a boca faminta segura a barra e, como sempre, quem decide é o sabor, esta única, verdadeira e definitiva visão.

Afinal, eram cegos os adivinhos gregos, e o olfato consiste no sentido essencial de um amor. No entanto, na espécie humana, comer é um ato gregário, e como faz para enxergar quem está na frente? O interlocutor não precisa ser lido nem decifrado, mas quem deseja compartilhar a mesa com um vulto?

Então, é pôr os óculos. Da última vez que o fiz, mal disfarcei a surpresa. Meu amigo de infância havia se transformado em Mick Jagger, e foi justo ele que, ao pôr os óculos, tinha me recomendado Botox como algo indolor e eficiente.

Mais empolgado fiquei com a batata frita. Há séculos, eu não a via de perto e me dei conta de que ela tem rugas ainda mais bonitas que as da gente.

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