sábado, 13 de julho de 2019


13 DE JULHO DE 2019
BRUNA LOMBARDI

O ANJO



Começo aqui uma conversa com você e isso me deixa feliz, porque este jornal e essa cidade fazem parte da minha história. Existe uma memória permanente de tantas tardes em Porto Alegre, do pôr do sol dourando o Guaíba, da extensão solitária dos pampas até o horizonte. Muitas pessoas queridas me ensinaram o significado da amizade dos gaúchos. E, é claro, uma delas em especial. Só posso começar assim, falando dele, porque ele é pra sempre.

Pro Mario Quintana (onde quer que ele esteja):

ANJO

Onde quer que você esteja

veja só o que acontece

a sua poesia continua

por aqui ninguém te esquece.

E agora você anda

por aí nesse universo

achando rima pra verso

perplexo feito criança

diante de cada mistério

brincando e às vezes sério

com humor e melancolia.

Sua sutil sabedoria

nota coisas tão pequenas

que outro não notaria.

E aqueles, os que ficaram

por aqui, nessa passagem

sentem no céu esse anjo

que você sempre escondia

olham com amor pras estrelas

e te desejam boa viagem.

Essa foi a última nota que escrevi para o meu querido amigo Mario que, por acaso, é um dos maiores poetas do Brasil. Talvez a pessoa mais simples e genuína que conheci. Uma lição de humanidade para quem teve a sorte de conversar com ele.

Eu era uma menina lançando meu primeiro livro de poesias, No Ritmo dessa Festa, ele, um poeta renomado e querido por todos. De repente, levei um susto: Mario Quintana comprou meu livro e estava na fila de autógrafos. Fiquei profundamente sensibilizada com seu gesto. Foi um caso de amizade à primeira vista.

Era um homem raro, único, como tudo o que ele escreveu, absolutamente encantador e profundamente pessoal. Morava sozinho num quarto de hotel em Porto Alegre, eu vivia no eixo SP-Rio, mas nos prometemos, desde então, que tomaríamos chá juntos pelo menos uma vez por ano.

E quase nunca quebramos essa promessa.

Ele disse que eu quebrei uma vez, quando estava grávida. Trocamos centenas de cartas. E acho que essas são coisas que ajudam a gente a viver. Um dia, me confessou que tinha dois pôsteres em seu quarto. Um da Greta Garbo e um meu. Honra maior do que essa não existe.

Ele gostava de coisas simples, cotidianas, rotineiras. E cheias de humor. Tinha ousadia no humor. Via comicidade nas cenas de rua, nas pessoas, nos fatos. Um homem capaz de rir de seus fantasmas.

Aprendi muito com Mario. Coisas pequenas, que não têm preço. Essas conversas tinham um valor incomensurável para mim.

Hoje, tenho certeza de que esse é o maior luxo de todos. O bem mais precioso, aquele que nenhum cartão de crédito pode comprar. Por isso, tenho uma afeição particular por Porto Alegre e por tudo o que a cidade me trouxe.

Mario Quintana continua presente andando devagar pelas ruas, sentado na mesa de um café. A poesia tem seus mistérios e um jeito sorrateiro de vencer o tempo e chegar às pessoas.

A poesia entra em quartos solitários e acompanha quem sente que não pertence, quem tem dúvidas, quem chora em travesseiros, quem erra, quem acerta, quem procura. A poesia é extraordinariamente generosa. Chega clandestina sempre que alguém precisa dela.

A cidade mudou, eu mudei, você com certeza também mudou. Mas os anjos, esses continuam, você não acha? 

Bruna Lombardi escreve a cada 15 dias neste espaço. Na próxima semana, leia a coluna de Monja Coen

BRUNA LOMBARDI

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