sábado, 13 de julho de 2019



13 DE JULHO DE 2019
CLAUDIA TAJES

História é para contar

Nesses dias em que o jornalismo é pauta não só pelo que nos apresenta, mas por sua própria natureza, fui chamada ao Movimento de Justiça e Direitos Humanos por conta de uma matéria censurada feita no final dos anos 1970 por um jornalista que conheci ainda no berço. No caso, o meu. A reportagem era do meu pai.

Fui ao encontro com o meu filho. Não é sempre que se pode reencontrar alguém que volta e meia aparece em causos e lembranças, mas com quem não houve tempo de se conviver. Chegamos os dois ao escritório do MJDH para falar com Afonso Licks e Jair Krischke. Afonso e meu pai trabalharam juntos na sucursal de O Globo em Porto Alegre, na época distante em que jornais de outros lugares tinham escritórios com estrutura, funcionários, vida própria aqui na cidade. Um estudante de Jornalismo de agora talvez não acredite, mas isso existiu.

Jair Krischke, que eu não conhecia ao vivo, foi sempre uma figura familiar para mim. Desde a fundação do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, em 1979, estava acostumada a vê-lo nas páginas de jornais, não raro sendo preso por defender os dissidentes do regime. Falando com o professor Luís Augusto Fischer sobre essa história, fiquei sabendo que o pai dele, o seu Bruno, também foi um dos fundadores do MJDH. Grande seu Bruno. Pois foi o mesmo Jair que eu via nas páginas dos jornais que nos abriu a porta - agora com os cabelos e a barba totalmente brancos.

"Santa Vitória do Palmar - um fenômeno de marés, que ocorre nos meses de abril, maio e junho, faz com que as águas que descem dos rios Uruguai e da Prata para o Oceano Atlântico percorram toda a costa do Uruguai. Nesse período, o mar devolve à terra tudo o que os rios carregaram: galhos, árvores inteiras arrancadas pela correnteza, tudo é lançado de volta à costa. Essa rotina, que se repete todos os anos, foi quebrada em 1976, 1977, 1978 e 1979 pelo mar, que também devolveu corpos humanos mutilados: homens e mulheres assassinados pela repressão argentina."

Assim começava a reportagem censurada do meu pai. Durante mais de três horas, ouvimos sobre a investigação em que ele descobriu que os corpos que deram na costa gaúcha eram de vítimas dos tristes "Voos da Morte" da ditadura argentina, prisioneiros jogados ao mar de aviões do exército. De volta a Porto Alegre, meu pai tinha uma grande matéria. E um grande problema também.

O Globo não publicou a reportagem não por falar da ditadura do país vizinho, mas porque o suposto fenômeno da maré vermelha estava a pleno no Hermenegildo, praia de Santa Vitória do Palmar - levantando justas desconfianças sobre sua verdadeira causa. Hoje se associa a nuvem tóxica que matou peixes, adoeceu pessoas e levou pânico ao Litoral Sul ao afundamento do Taquari, barco que transportava carga da Dow Chemical Brasil e que encalhou carregado de veneno em Cabo Polônio, a cem quilômetros do Hermenegildo. O presidente da Dow Chemical na época do encalhe era o mesmo general Golbery do Couto e Silva que chefiava o Gabinete Civil do governo Geisel durante tragédia do Hermenegildo. Resultado: deixa quieto. Não é hora de falar sobre esses mares.

Enquanto Jair e Afonso abriam a memória e os arquivos, meu filho e eu viajávamos no que fazer com uma história dessas. A reportagem que não saiu? Um documentário? Independentemente do que acontecer, esta coluna é para lembrar que o jornalismo, o verdadeiro jornalismo, segue sendo a única maneira que nós temos para conhecer o que de fato existe por trás do que querem que a gente saiba. Pensando na vida que o meu pai, o seu Tito, levou, sou testemunha de que não foi fácil, houve muita frustração e mal deu para pagar as contas no final do mês. Mas não é que valeu a pena?

CLAUDIA TAJES

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