24 DE JULHO DE 2019
NÍLSON SOUZA
Umbigocentrismo
Reflexões de um filósofo de botequim que sequer frequenta botecos. Estou cada vez mais convencido de que todos os males destes tempos desconcertantes, os desgovernos em série, a corrupção dentro e fora da política, a criminalidade, as drogas, a truculência no trânsito, a mulher que empurra a outra por torcer para clube diferente do seu, a espionagem digital e a hipocrisia oficial, o autoritarismo, o quase fascismo, o narcisismo, o clubismo, o nepotismo e outros ismos que não me ocorrem no momento, tudo isso tem origem no umbigocentrismo - que é um apelido menos aristocrático para egoísmo.
A tecnologia escancara esse culto ao próprio umbigo, representado pela telinha enfeitiçada que todos carregamos na palma das mãos e que reflete a nossa imagem, o nosso grupo, os nossos amigos, as mensagens que nos agradam, as nossas opiniões e a nossa visão de mundo. Tem sido difícil sair desse círculo vicioso. Como cada indivíduo está aparelhado para impor os seus conceitos e preconceitos, há cada vez menos tolerância com as diferenças, com o contraditório, com o direito dos outros. E eles são - como advertiu ironicamente o filósofo Sartre - o inferno.
Então, em contraposição e para não cair em depressão, este escriba poliânico prefere acreditar que existe também ao menos um purgatório para a gente reumanizar os nossos conflitos. É um espaço mental, cultural e educacional para a necessária reflexão sobre os nossos procedimentos rotineiros.
Lembram-se daquele comercial de chinelos em que uma bela atriz aparecia de biquíni branco e sem qualquer sinal de umbigo na barriga chapada? Pois é, depois da repercussão, a agência responsável explicou que houve um problema no processo de conversão de imagem e acabou republicando o vídeo com a devida cicatriz no seu lugar. Também há casos conhecidos de pessoas que, depois de cirurgia plástica abdominal, acabaram ficando sem a marca de nascença. São exceções, quase aberrações, na espécie sapiens.
O normal é nascermos com o cordão que nos alimentava durante a gestação e que, uma vez rompido, deixa a marca indelével da nossa interdependência e do nosso vínculo com outro ser humano. Olhar para o próprio umbigo, ainda que simbolicamente, deveria ser um gesto de civilidade, de reconhecimento ao outro, de gratidão e pertencimento. Temos, sim, potencial para redefinir esse significado.
Prova disso é a corrente de solidariedade que se segue a cada episódio de injustiça ou crueldade, como no recente caso das torcedoras de futebol. De acordo com estudiosos dos pontos de energia do corpo, é no umbigo que se localiza o nosso poder pessoal. Usemo-lo, pois, colocando em prática esse exercício de desapego das nossas crenças e crendices chamado empatia - colocar-se sempre no lugar do outro.
Um filósofo de verdade, Confúcio, resumiu esse propósito numa só palavra: reciprocidade. Fazer ao outro o que gostaríamos que nos fizesse.
NÍLSON SOUZA
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