terça-feira, 23 de julho de 2019


23 DE JULHO DE 2019
CARPINEJAR

Culpa do tamagotchi

Não poderia prever: aquele brinquedinho inofensivo japonês que a minha filha não soltava na segunda metade dos anos 1990 era uma preparação para a dependência digital.

Ela era uma criança e já estava sendo formatada para o monopólio do celular. Estava sendo condicionada para a dependência. Para nunca mais largar um aparelho, para ficar 24 horas monitorando as redes sociais ininterruptamente.

Não percebi a teoria da conspiração. Não antevi a catástrofe numa época de internet discada e de telefones portáteis do tamanho de um capacete.

Sugeria ser apenas um chaveirinho simpático e colorido capaz de distrair os filhos por algumas horas. Quando o dei de presente, não poderia identificar a lobotomia em curso, os primórdios da hipnose, o início da massificação mental de uma geração.

Entrava em curso uma alienação coletiva, que pretendia cooptar os pequenos para que se transformassem em adultos viciados em tecnologia.

Foi uma escola secreta de servidão online.

Tudo começou com tamagotchi. Os filhos almoçando e jantando com o celular é culpa do tamagotchi. Os filhos não ouvindo mais nada do que os pais aconselham é culpa do tamagotchi. Os filhos caminhando e digitando, de cabeça baixa, podendo ser atropelados, é culpa do tamagotchi. Os filhos irritados com o fim da carga e procurando desesperadamente uma tomada é culpa do tamagotchi. Os filhos entrando em pânico com a tela escura (Como vou chamar um carro? Como vou telefonar para pedir ajuda? Como vou sair daqui?) é culpa do tamagotchi.

Aquele animalzinho de estimação virtual, com pilhas intermináveis, transformou os nossos meninos e meninas em ansiosos inveterados.

A partir de um relógio, a motivação do brinquedo consiste em cuidar do bichinho como se fosse real, oferecendo-lhe carinho virtual, papinha virtual, banho virtual.

Para quem não se lembra, você se tornava mãe ou pai de um serzinho imaginário. Testemunhava o seu nascimento, providenciava alimentação, preparava o sono, fornecia remédios e não deveria se distanciar jamais dele, sob o risco de morrer. A morte era brutal, com um apito desenfreado até apagar a bateria.

As crianças choravam com o fim de seu mascote, culpavam-se por não ter dado atenção suficiente, gritavam, desesperadas, por ter se distanciado dele ao completar as lições da escola.

Não compreendiam que se tratava apenas de uma programação e que ele renasceria de acordo com a vontade do consumidor. Precisavam evitar o vexame do recomeço da vida. Assim, levavam o objeto para todos os cantos, conferindo o visor, vendo se ele comemoraria aniversário, se iria sobreviver, se respondia aos estímulos constantes e compulsivos.

Bem alimentado, com exclusividade total, o tamagotchi finalmente cresceu. Tornou-se o nosso smartphone.

CARPINEJAR

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