sábado, 27 de julho de 2019



27 DE JULHO DE 2019
CARPINEJAR

Bicho de duas cabeças

Apaixonado esquece tudo. Como se a memória anterior não valesse mais, só porque a pessoa com quem vem saindo não estava nela antes.

Apaixonado perde celular, chaves, fones, carregador, cartão de crédito, identidade - é um caos ambulante. Tem grande chances de entrar no Serasa pela primeira vez, por atrasos em suas faturas.

Quanto maior o apagão, maior a paixão.

No momento em que conheci Beatriz, a minha esposa, eu permaneci com o olhar boiando, a ver navios, a ver aviões, a ver unicamente o próximo encontro com ela.

Cheguei ao extremo de esquecer uma mala na portaria do hotel. Estava em São Paulo para uma palestra. Na hora do check-in, peguei a minha mochila e segui embora, para Porto Alegre. Abstraí que estava com bagagem. A amnésia foi tão grave que percebi o lapso apenas quatro dias depois. Ou seja, embarquei sem nenhum sofrimento, sem sentir nenhuma pontada de remorso por estar deixando algo para trás. A fissura não tem passado. E não me desesperei para localizá-la, não queria mesmo perder a mulher de minha vida. O meu foco se destinava a um rosto, apagava todo o resto.

Resisti a uma época de vultuosa displicência. Não sei como não fui preso. Comprei roupas em uma loja e parti sem pagar, na maior cara-de-pau. O atendente correu em meu encalço pelo shopping para avisar que não havia acertado o valor. Tentei entrar em um carro que não era meu no estacionamento, disparei o alarme em minhas vãs tentativas de arrombamento e chamei o seguro por não estar conseguindo abrir a porta. Também faltei a reuniões de negócios, cabulei aniversários de amigos, não retornava as ligações para ninguém... Empilhei vexame em cima de vexame. E nenhum incidente estragava o meu bom humor. Tudo o que acontecia de errado tornava-se história para mostrar a Beatriz o quanto ela estava se envolvendo com um louco. Louco por ela.

Se paixão é desmemória, o amor é o contrário: excesso de memória. Não esquecemos mais nada e passamos a cobrar e fiscalizar o outro. Trocamos de extremos. Substituímos a leveza pela possessividade. Não aceitamos enganos com a mesma facilidade de antes. Não perdoamos a mínima mudança de hábitos. Ficamos em cima controlando o que cada um faz e deixa de fazer. É um estresse da intimidade, um excesso de visibilidade que beira à neurose. Temos ataques quando alguém perde algo. Já soltamos os cachorros: "Não presta atenção, não dá valor ao que tem, não se importa, onde anda com a cabeça". Armamos escândalo quando um dos dois deixa vencer a data de um boleto. Telefonamos para os amigos quando o celular anda desligado. Contamos os minutos, os trocos, numa completa avareza de viver.

Para quê? Deveríamos nos apaixonar de novo e sempre por quem a gente ama. Para perceber que objetos vão e vêm, desde que resista ao nosso lado aquele com quem escolhemos nos casar.

CARPINEJAR

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