quarta-feira, 3 de julho de 2019


03 DE JULHO DE 2019
DAVID COIMBRA

O olho de vidro de Columbo


Às vezes me pego assobiando a música de abertura de Os Detetives. Nunca mais esqueci. Os Detetives era uma série de televisão dos anos 1970. Passava à noite, e eu assistia com a minha mãe. Meus irmãos dormiam um pouco mais cedo, porque eram mais novos, e eu e a mãe ficávamos vendo as aventuras de Columbo, McMillan e McCloud.

Gostávamos mais do Columbo, claro, todos gostavam mais do Columbo. Era interpretado de forma genial por Peter Falk, um ator americano que tinha um olho de vidro. Um amigo meu também tem olho de vidro. O Fernando. Ele é muito inteligente e criativo. É um engenheiro engenhoso. E adora sacanear os incautos com aquele olho falso. Às vezes, numa mesa de bar, ele pega a faca e bate com ela no olho. Tec! Tec! Quem não sabe se apavora:

- Sangue de Cristo! O que é isso???

Um dia, estávamos caminhando no estacionamento de um supermercado e veio um carro pelo lado do olho falso dele. O Fernando continuou caminhando calmamente, o motorista se irritou, buzinou e gritou:

- Tu é cego???

O Fernando fez a volta até a janela do motorista, arrancou o olho e mostrou-o na palma da mão:

- Sou, ó. O outro: - AAAAAAAAAAAAH!

O olho de vidro de Peter Falk foi decisivo para a sua composição de Columbo. Ele ficava com um olhar estranho, de viés, que combinava com o personagem. Columbo usava sempre uma capa de chuva meio amassada, vivia fumando e citando sua mulher, que nunca aparecia.

Sou adepto de histórias de detetive. Já naquela época lia a velha Agatha, Simenon e romances noir a mancheias, mas o formato de Columbo era diferente: primeiro eles apresentavam o crime e só depois de uns 15 minutos é que Columbo entrava em cena. Quer dizer: nós sabíamos de tudo, ele não. O interessante era ver como Columbo desvendaria a trama. Ele ficava cercando o assassino, fazendo-lhe perguntas aparentemente sem sentido, mas que guardavam uma lógica que encontraríamos no fim. Sensacional.

Peter Falk fez um trabalho tão bom em Columbo, que o personagem ganhou uma estátua em Budapeste, na Hungria. O fato de estar escrevendo sobre ele hoje, tantos anos depois do fim da série, também é prova da excelência da atuação de Falk.

Mas tenho de confessar que não é apenas a qualidade das histórias de Os Detetives que me faz lembrar de tudo isso e, vez em quando, assobiar a música-tema do seriado. O que realmente me ficou impresso na alma foram as noites em companhia da minha mãe. Nos divertíamos vendo o episódio e depois comentávamos a respeito. Na semana seguinte, no dia da série, já acordava pensando: "Oba, hoje tem Os Detetives!". Era ótimo ver Columbo em ação, mas era melhor ainda o fato de que eu e minha mãe estávamos partilhando algo de que ambos gostávamos.

Assim ocorre com o pai que leva o filho ao jogo de futebol. Mal sabe o pai que não é o apreço por um time que está desenvolvendo no filho. É o vínculo entre eles dois.

Um dia, meu amigo José Antônio Pinheiro Machado me contou que a melhor refeição da sua vida foi um almoço que dividiu com seu pai, acho que em Portugal. Fiquei impressionado com a revelação. Afinal, o Zé Antônio é um amante da gastronomia até no nome: ele é o Anonymus Gourmet. Quis saber que prato maravilhoso era aquele, que o marcara tanto a ponto de ser eleito como o número 1. 

O Zé Antônio, então, descreveu a comida que comeu e o vinho que bebeu, mas o fez sem o costumeiro entusiasmo com que descreve comidas e bebidas. Isso me intrigou e me confundiu. Mas, como Columbo, desvendei o mistério em um detalhe. É que o Zé Antônio só se emocionou de fato, com aquelas recordações, ao falar do pai. Aí me lembrei das noites em frente à TV, vendo Os Detetives com minha mãe. E compreendi que bons momentos vividos juntos com quem se ama constroem mais do que dias agradáveis: constroem a eternidade.

DAVID COIMBRA

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