sábado, 27 de outubro de 2018


27 DE OUTUBRO DE 2018
MÁRIO CORSO

Água concentrada


Na minha infância, o melhor momento do domingo eram os filmes de faroeste. Havia uma cena recorrente. O herói fazia uma longa jornada debaixo de um sol inclemente. Comia poeira em um trajeto de areia, pedra e desolação. Finalmente chegava a uma vila. Mal amarrava o cavalo, pedia no saloon um martelinho de uísque.

Como nunca tinha tomado, imaginava aquilo como a mais refrescante das águas. Um líquido concentrado, pequeno, mas que engolia a aridez de um deserto. Magnífica invenção contra a sede mais árdua.

Portanto, quando Nico surrupiou de casa uma dessas bebidas poderosas, fiquei eufórico. Aquilo não era para meninos, sabíamos, mas por que não experimentar aquela maravilha que enfeitiçava nossos mais velhos e fazia a delícia de cowboys de matiné?

Tínhamos um terceiro cúmplice, Beto, também da nossa idade. Escolhemos a tardinha de domingo para a iniciação. Um terreno baldio, que já servira para outros planos secretos, seria o palco.

Como Nico tinha providenciado os meios e dado a ideia, coube-lhe, então, a honra do primeiro gole. Fui o segundo. Tive a sensação de engolir uma brasa. Menti que era bom. Beto não conseguiu nem disfarçar, cuspiu.

Nosso patrocinador bebeu mais um gole. Cinco minutos depois, estava bêbado. Ou, hoje pensando, queria estar bêbado. Gritava, cantava e girava sobre si numa dança patética, um xamanismo anacrônico. Sem razão, rasgou a própria camisa.

Era uma festa só dele. Para nós, a aventura desembestou em horror. Eu e o Beto olhávamos assustados o exu que brotou. Temíamos ser descobertos e precisávamos esconder um pinguço escandaloso.

Finalmente, ele vomitou, da pior maneira, em suas roupas. Mas seguia embriagado de si mesmo. Queria caminhar pela cidade naquele estado lamentável. Nossos olhos eram de pouca valia para sua performance.

Tentamos impedi-lo e ele nos driblou. Saltou o muro e se foi. Por um tempo imploramos que voltasse, depois o abandonamos a sua sorte. Perambulou pela cidade como um louco e foi recolhido pela família.

Sua mãe ligou para as nossas para alertar que talvez tivéssemos aprontado juntos. O contraste entre a descrição do Nico e a nossa sobriedade nos salvou. Para evitar uma bronca em casa, deixamos um soldado ferido para trás. Cometemos a maior das infâmias entre amigos, não cuidar de bêbado. Não sei do Beto, mas é uma das minhas maiores vergonhas.

Aprendi que não há substância capaz de desbancar a aridez da vida. Já Nico continuou esperando demais das drogas. Anos depois, cruzou a fronteira das injetáveis. Compartilhar seringas lhe custou a vida. Nada deteve sua busca de uma substância mágica que atalhasse para a felicidade.

Ninguém conseguiu impedir sua busca infrutífera. Bons e inquebrantáveis laços afetivos podem ajudar a sair desse labirinto. De certo, ele seguiu tendo o azar de amigos frouxos.

MÁRIO CORSO

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