quinta-feira, 18 de outubro de 2018


18 DE OUTUBRO DE 2018
O PRAZER DAS PALAVRAS

Cinderela

HÁ VOCÁBULOS QUE desnudam a distância cultural entre as gerações

Dirigindo-se a um grupo de jovens e inexperientes folcloristas, Câmara Cascudo, um de meus autores favoritos, afirmava que o desconhecimento do passado faz tudo parecer novidade. Lembrei-me disso na semana passada, ao explicar para meus alunos o significado da expressão "Morrendo e aprendendo"; o caro leitor logo compreenderá do que se trata.

É uma antiga história portuguesa: numa pobre choupana, um velho camponês agoniza, rodeado pelos filhos. É uma fria e cinzenta tarde de inverno, e a triste cena é iluminada apenas por um foguinho mirrado que arde num canto da lareira de pedra. Sentindo que chegou sua hora, o velhinho pede que lhe ponham na mão a vela que o guiará pelas sombras do outro mundo, mas há muito se gastou o último coto de vela e não há vizinho a que se possa recorrer. 

Diante da angústia do pai, o filho mais moço vai até a lareira, remexe o borralho e traz, na pá, um carvão incandescente e um punhado de cinzas. Espalmando a mão do agonizante, enche-a com as cinzas e depõe sobre elas o carvão luzente, que, dessa forma, não lhe queima a pele. O pai, avivando a brasa com seu último sopro, despede-se da vida com um comentário satisfeito: "Morrendo e aprendendo!".

Na discussão que se seguiu, ficou claro que os alunos tinham captado o significado da parábola: "Até na hora da morte estamos aprendendo!", disse um; "A vida é um eterno aprendizado", disse outra. E por aí seguiram eles, até que alguém confessou que não sabia o significado de borralho. Olhei em torno: se assim posso dizer, era uma dúvida unânime. Alguém disse brincando que lembrava o verbo borrar; um gaiato comentou que borralho era uma rima perigosa, e todos riram da insinuação (eu também, aliás). Era hora de intervir: "E a Gata Borralheira? Vocês conhecem?". Uns poucos sabiam que este era o nome antigo da Cinderela, mas não desconfiavam por quê.

Episódios desse tipo põem a nu a distância cultural de gerações muito afastadas no tempo. Quem já tentou usar com adolescentes a velha expressão "vira o disco" certamente não foi compreendido por uma geração que mal e mal conheceu (e já abandonou) o CD, que só tem um lado. E como é que um jovem nascido com um smartphone na mão vai entender o sentido de "caiu a ficha", tão obsoleta quanto os telefones públicos? Este é o caso de borralho, que designa, segundo Bluteau, "as cinzas quentes que ainda conservam em si alguma brasa miúda". Era uma palavra de uso diário quando todas as casas usavam lenha ou carvão para cozinhar; hoje ela figura apenas no repertório das pessoas mais velhas.

A história da infeliz mocinha que é humilhada por suas meias-irmãs invejosas foi contada de inúmeras maneiras e nas mais diferentes linguagens. No Ocidente, Perrault, de um lado, e os irmãos Grimm, do outro, criaram as duas versões dominantes, e em ambas a jovem vive escravizada na lida da cozinha, sempre suja da cinza do fogão e da tisna das panelas - característica que lhe valeu o apelido de Cendrillon, no Fr. (de cendre, "cinza"); de Cenerentola, no It. (de cenere, "cinza"); de Cenicienta, no Esp. (de ceniza, "cinza"); e Cinderella no Ing. (de cinder, "borralho"). Aqui e em Portugal era a Gata Borralheira, até que o cinema projetou definitivamente o nome de Cinderela.

A vida urbana nos afastou muito do fogo vivo e, consequentemente, dos vocábulos que o acompanhavam. Não culpo meus alunos por desconhecerem borralho; eu mesmo fiquei sabendo há pouco da existência de cirela, nome daqueles anéis usados para reduzir o diâmetro das bocas do fogão a lenha. Meu amigo Marcos Peruzzolo me assegura que sempre usou este termo em sua infância em Cacique Doble: "Para acomodar a panela de fazer polenta, que tinha o fundo arredondado, tínhamos de tirar as cirelas para ela poder encaixar". E essa, meu prezado leitor conhecia?

Cláudio Moreno, escritor e professor, escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

CLÁUDIO MORENO

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