12 DE OUTUBRO DE 2018
EDUARDO BUENO
Brancos e nulos
Ufa, graças aos deuses, não passou de um pesadelo. Tudo o que julguei houvera sido real, tratava-se só de sonho mau. Sim, fui dormir na quinta-feira passada, dia 4 de outubro, e, ao longo da madrugada, visões medonhas e aterradoras me assombraram: vislumbrei um país cheio de delegados, pastores evangélicos, majores, sargentos e cabos, boa parte deles retrógrados e iletrados, alçados ao poder; vi gente que censurou exposição de arte se elegendo em primeiro lugar, vendedora de sofá obtendo votação maciça, ex-ator pornô bombado e boçal entrando na Câmara, apresentador de programa de TV que sempre foi fracasso fazendo sucesso nas urnas, príncipe virando sapo e ratos, ratões e ratinhos roendo o quarto todo.
Acordei em sobressalto. Mas, então, feito milagre da física quântica, o calendário marcava 15 de outubro. Era estranho, mas reconfortante: tudo o que se passara do dia 5 ao dia 15 - incluindo o domingo, dia 7 - simplesmente não havia existido. Ou, se existira, fora varrido do tempo e riscado do mapa.
Ou seja, dias nulos, que passaram em branco.
Você acha que estou louco? Que deliro, que desvario, que alucino, que não estou na posse de minhas (de resto parcas) faculdades mentais? Ledo engano. O que acabo de descrever, aconteceu, e exatamente como falei: à meia-noite do dia 4 de outubro, o calendário deu um salto para uma da manhã do dia 15 do mesmo mês, ignorando os 10 dias que deveriam separar uma data da outra. Aconteceu bem assim. E ponto.
Pena que foi em 1582 e não em 2018.
De fato, quando a quinta-feira, 4 de outubro de 1582, terminou, o calendário avançou de imediato para domingo, 15 de outubro do mesmo ano. Dava-se assim a dramática transição do calendário juliano para o calendário gregoriano, determinada pelo papa Gregório XIII por meio da bula Inter Gravissimas. Pois veja o quão aflitiva estava a situação: não bastasse ser "inter" a bula ainda precisou ser "gravíssima". E tudo por causa de uns míseros segundos que foram se somando, se somando - como votos que, um a um, elegem ratões e ratinhos, censores e bombados.
O ano, como se sabe, possui 365 dias, cinco horas, 48 minutos e 45 segundos. O calendário juliano os arredondou para 365,25 dias, acrescentando um ano bissexto, de 366 dias, a cada quatro anos. A princípio, a proposta pareceu funcionar. Ocorre que tal fórmula desprezava a perda de um punhado de segundos todos os anos.
Com o tempo, a soma deles acabou por distorcer gravemente o calendário e, passados 15 séculos, a defasagem se tornou insustentável. Quando o astrônomo Cristóvão Clávio foi contratado para calcular o erro acumulado no calendário juliano, a distorção já havia consumido 10 dias inteiros. Foi preciso, então, impedir que eles existissem. Fico cá com meus botões (da urna eletrônica) perguntando se não seria prudente repetir a dose.
Bom, mas talvez nem seja preciso: parece que já estamos mesmo voltando para o Ano Zero.
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