sábado, 6 de outubro de 2018



06 DE OUTUBRO DE 2018
MÁRIO CORSO

Caixa de papelão

Quem lembra da infância sabe o valor de uma caixa de papelão grande. Poucas estruturas são tão plásticas. Um bom piloto consegue aterrissar aquela astronave em vários planetas. Mesmo com pouca experiência náutica, dá para cruzar os mares como um barco pirata perigoso. Submerge se for o caso, até mil léguas, é um ótimo submarino explorador das fossas abissais.

Além disso, uma caixa dessas é um excelente esconderijo contra monstros. Suas laterais resistem a qualquer ataque alienígena. Fortaleza inexpugnável contra bandidos. Segura também frente aos piores fantasmas. Nenhum zumbi ameaça quem está dentro. Enfim, é o melhor ferrolho de que uma criança pode dispor.

Um dia, um paciente contou-me suas aventuras com essa caixa mágica. Ele e o irmão não tinham brinquedos comuns. Ou melhor, tinham, mas eram brinquedos errados. A mãe, pouco conectada à infância deles, os presenteava de forma inadequada. Ou era um brinquedo para outra idade, ou para outro tipo de criança, ou para meninas. Ela nunca acertava. Com a idade, os dois já esperavam qual o fora que ela iria dar.

Mas crianças criam seus próprios brinquedos. Um dia, eles conseguiram uma caixa onde viveram inúmeras peripécias. Mas, depois de um desses dilúvios que só acontecem em Porto Alegre, ele encontrou a nave espacial destruída sobre a grama. O papelão disforme era sua mais triste lembrança da infância. Tantos anos depois, não conteve as lágrimas.

Ele tinha uma teoria. Acreditava que a lembrança era um marco do fim da infância. Portanto, a tristeza seria pela inocência e imaginação perdidas. Concordei, mas lhe perguntei: por que era tão pungente o sofrimento e por que ele não contou essa cena a ninguém, nem ao irmão, seu copiloto de sempre.

Não tinha resposta. Não se sentia à vontade para comentar. Brota-lhe uma vergonha maior do que o sofrimento. Por várias sessões o tema rondava. Lembrava da ausência do pai e das trapalhadas maternas. Sempre exausta, criando e sustentando os meninos sozinha. Tinha pavor de datas comemorativas. A mãe, fragilizada pelo abandono, misturava álcool com remédios e fazia um papelão para a família.

Repito a palavra papelão e ele se dá conta. A cena de fato representava o fim da infância, mas estava sobreposta a um sofrimento maior: ver a mãe atrapalhada, fazendo um papelão para seus avós. A caixa arriada, que já não protege ninguém e onde não há espaço para entrar, era a representação plástica da fragilidade materna.

Nada assusta mais uma criança do que ver seus protetores desamparados. Quem sabe, a caixa não teria servido como um abrigo para acolher também aquela mulher, deixada para trás, como tantas que criaram seus filhos sozinhas. Aquele menino, agora um homem, chora por ter sido demasiado pequeno para acolher a mãe em sua fortaleza de papel.

MÁRIO CORSO

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