30 de maio de 2017 | N° 18858
DAVID COIMBRA
Astronautas não tomam banho
Ontem foi o dia do centenário de Kennedy. Há um século cheio, mais um dia, ele nasceu nesta vizinhança, a duas quadras de distância. Sua primeira escola é a escola pública em que meu filho estuda. A mãe dele, Rose, era filha de um prefeito de Boston.
No filme Jackie, protagonizado pela inhugazinha Natalie Portman, Rose aparece pedindo que o corpo do filho fosse enterrado exatamente aqui, no solo antigo da cidade de sua infância, Brookline. Jackie torce o nariz:
– Brookline?... Brookline não é lugar para se enterrar um presidente...
Assisti ao filme em um cinema de Brookline. Quando se deu essa cena, a assistência caiu na gargalhada. Já eu fiquei meio ressentido com Jackie. Bem coisa de nova-iorquino, tamanho desprezo pela vida simples do interior.
De qualquer maneira, o que queria contar é que essa ligação de Boston com os Kennedy tornou o centenário assunto ubíquo na cidade. Há eventos relacionados a Kennedy por toda parte.
Lá na zona sul, à beira do oceano, há um museu que foi construído pelo irmão caçula de JFK, o senador Edward, conhecido como Ted. No museu, há um prédio que reproduz com exatidão o Senado americano. Ted acreditava na importância do Senado, tanto que foi eleito sete vezes, consagrando-se como defensor de causas progressistas, como o aborto e o casamento de pessoas do mesmo sexo.
Mas o que interessa é que o museu de Ted Kennedy dedicou o fim de semana passado a um dos temas preferidos de JFK, a exploração do espaço. Homem de grandes ambições e grande arrojo, como sua mulher Jackie, JFK não se contentava com os continentes da Terra. Queria o universo.
Então, no belo museu à beira do mar, estava exposta até uma das cápsulas usadas em viagens ao redor do planeta e, no domingo, um astronauta da Nasa deu palestra. Como o meu filho está numa fase, digamos, espacial, lá fomos nós, ver o astronauta.
Foi interessante. O homem passou seis meses dentro de uma nave pendurada no vazio do espaço. Fiquei me imaginando em seu lugar, flutuando devido à falta de gravidade e vendo o nosso pequeno planeta azul pelo vidro da escotilha, até que ele contou que não há como tomar banho no espaço. Arregalei os olhos. Como é que é? O astronauta confirmou.
– A gente não toma banho – disse, com muita naturalidade, e enveredou por outra questão.
Já eu continuei naquela questão e dela não saí mais. Seis meses sem tomar banho? Meu interesse pela profissão de astronauta terminou ali. Não iria para o espaço se tivesse de ficar seis meses sem tomar banho.
Suponho que o ambiente da nave tenha se tornado desagradável com todos aqueles astronautas suando debaixo de seus macacões cor de prata e exalando diferentes fluidos corporais, mas esse nem seria realmente o problema. O problema é que o banho é um momento importante do dia. Um momento em que você se dedica inteiramente a você mesmo, remove com a água quente o peso e a poeira da jornada e, enfim, relaxa. Ah, agora estou pronto para um tinto suave e um livro denso.
Não trocaria o meu banho pelo espaço. Foi pensando nisso que tomei consciência da minha pequeneza. Não é só em relação ao banho. É em tudo. Pergunte-me:
1. Onde preferia estar? Num restaurante três estrelas de Paris ou numa mesa de subúrbio em Porto Alegre, bebendo chope com os amigos? Resposta: o chope e os amigos.
2. Que férias são melhores? Lugares exóticos na Ásia ou a mesma praia brasileira, na mesma casa, com as mesmas pessoas? Resposta: a praia brasileira.
3. A escolher: um milhão de dólares ou aquela casinha de madeira com pátio que descrevi semana passada? Resposta: bem, vou ficar com o milhão e comprar a casinha.
Não vou ser burro, também, né?
Em todo caso, admito que me falta essa ambição que torna os homens gigantes. A ambição de Jackie e JFK. Eu, ao contrário, não negocio a doce rotina dos dias pela glória sem paz. Nunca seria presidente. Nunca viajaria pelo espaço. Deixem-me aqui, que já tenho muito a fazer. Tanto que vou agora mesmo tomar um banho quente, para relaxar. Aquele tinto e aquele livro estão me esperando.
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