30 de maio de 2017 | N° 18858
CARPINEJAR
Bem depois
A dor da perda exige tempo para doer. Saber não é ainda sofrer.
Despedimo-nos de alguém por fora, pelas palavras, mas demora para se despedir por dentro, pelo silêncio e pela saudade. Demora a se desapegar pelos hábitos e pela rotina. Demora muito tempo para uma ferida encontrar a sua saída.
Uma coisa é dizer adeus, outra é não ter mais como telefonar ou visitar ou abraçar ou beijar ou partilhar uma casualidade fora de hora. Ficar sozinho é muito mais fundo do que falar sozinho.
Há conversas que só poderiam ser feitas com um ente que não existe mais. Com o confidente, morrem os nossos segredos. Morre parte de nossa intimidade. A voz prosseguirá apartada dos ouvidos prediletos.
Quando um amigo enfrenta a morte do pai ou da mãe, não me arrisco a elogiá-lo por estar reagindo com coragem. O susto da notícia não é a dor. A surpresa é apenas o começo do luto.
Os dias serão definitivamente diferentes dali por diante. Os sonhos serão as únicas lembranças novas daquela relação.
Por mais que a morte signifique um alívio, com o fim do sofrimento da pessoa amada, sentiremos a falta bem depois. Nenhuma justificativa preencherá a lacuna. Nenhuma religião amenizará a violência de não mais ver e ser visto.
A dor explodirá bem depois, quando ninguém mais comentará o assunto, quando todos continuarem com as suas urgências e o funeral já não provocar condolências.
A esperança confunde nas primeiras semanas, nos primeiros meses, nos primeiros anos, pois ela ainda se alimenta de um passado recente. Complicado quando a esperança também vai se apagando, e você percebe que “até um dia” dito pelo padre era uma metáfora, não acontecerá nesta vida, não terá chance de dizer mais nada, de repor mais nada. Por isso os familiares retardam ao máximo a visita à lápide querida, realmente acreditam que o morto surgirá de repente e que tudo foi um engano.
O velório e o enterro não machucam tanto porque se tem o corpo perto para chorar. O difícil é a lágrima na distância, a lágrima sem pele nenhuma pela frente, a lágrima órfã, a lágrima no futuro.
Triste não é seguir atrás do caixão até a terra, no cortejo melancólico pelos corredores de pedra, apoiado pelos colegas e conhecidos.
É seguir à frente do caixão na próxima década, após o portão do cemitério se fechar, tendo que cobrir um nome com as próprias lembranças e se virar com as perguntas.
A verdadeira dor da perda é falar sozinho. Enfrentar a loucura de falar sozinho.
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