SÃO PAULO - Ainda há juízes em São Paulo. Um desembargador teve o bom senso de revogar as "lettres de cachet" que, a pedido da prefeitura, foram expedidas por um magistrado de primeira instância, permitindo que equipes de saúde e a guarda municipal catassem à força aqueles que julgassem ser dependentes de drogas e os obrigassem a submeter-se a avaliação médica para eventual internação compulsória.
"Lettres de cachet", para quem não se lembra das aulas de história, eram as cartas seladas (secretas) assinadas pela coroa francesa que determinavam o aprisionamento ou a internação hospitalar de inimigos políticos, loucos, ébrios, prostitutas e outras pessoas indesejáveis. Em todos os casos, a privação da liberdade era automática e não dependia de julgamento. Essas epístolas se tornaram o símbolo das arbitrariedades cometidas pelo rei, um dos fatores que levaram à Revolução Francesa.
Traço o paralelo histórico na esperança de mostrar que a medida judicial que a prefeitura tentou implantar, ao enfraquecer as garantias individuais de todos, é um problema que vai além da cracolândia. Não seria difícil, afinal, argumentar que a internação, ainda que peque por autoritarismo, visa ao bem dos dependentes. Mais até, as pessoas que vivem nas áreas próximas às frequentadas pelos usuários de drogas têm direito a uma vizinhança menos inóspita.
É difícil discordar disso. Buscar uma resposta para o problema da cracolândia é um dever do prefeito e da própria sociedade. Mas qualquer solução precisa necessariamente estar de acordo com a lei e com a ciência. A iniciativa da prefeitura, infelizmente, contrariou ambas. Passou como um trator por cima dos direitos e garantias fundamentais e ignorou o que a psiquiatria tem a dizer sobre o papel das internações em casos de dependência. E tudo o que conseguiu foi propagar a cracolândia por outras áreas da cidade, multiplicando os transtornos sem nada resolver.
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