quarta-feira, 27 de junho de 2012



ANTONIO PRATA

Do chutão

O chutão é muito brasileiro e corintiano; é um ato de fé: a bola, como oferenda aos deuses, sobe aos céus

NA ÚLTIMA quarta, enquanto via o Corinthians passar heroicamente pelo Santos e chegar à sua primeira final de Libertadores, entendi a complexidade e a beleza sutil de uma jogada geralmente pouco valorizada pela crônica esportiva: o chutão.

Embora fracasso de crítica, poucos lances são mais aplaudidos pelo público, no estádio: a bola sobra próxima à área, o zagueiro vem em desabalada carreira e, com um botinaço sem dó nem rumo, a manda para a lateral, para a frente, para a linha de fundo, até, se for o caso: importante é isolá-la.

O petardo é dado com uma convicção talvez só comparável à do maestro, no último movimento da batuta, ao final de uma sinfonia, à estocada mortal do toureiro, no cangote da besta arfante, à derradeira ondulação dos corpos no momento preciso do orgasmo. E, enquanto a bola segue sua trajetória rumo ao alambrado, à arquibancada, à rua, à Lua e além, a torcida aplaude, vigorosamente.

O que, exatamente, aplaude a torcida? A eficácia da jogada? Não. Se assim fosse, maiores seriam as palmas quando o zagueiro domina a bola e a toca pro lateral, quando a lança para um centroavante e dá início a um ataque: afinal, é mais seguro para o time que se defende manter a bola nos pés que mandá-la para fora e a fazer voltar ao campo nas mãos do adversário.

Acontece que o futebol, embora bretão, não é 100% razão: o chutão, creio, é aplaudido menos por seu efeito prático do que por sua eficácia simbólica. Não é uma solução, mas uma declaração de princípios: aqui estou eu, pondo meu coração na ponta da chuteira, tão empenhado em vencer que, em vez de fazer o que seria mais inteligente, mais prudente, dominar e passar a bola, a enviarei para a Conchinchina.

A torcida aceita o paradoxo -um cuidado tão grande que descamba pro descuido- e vibra.

Há na cultura do chutão algo de profundamente brasileiro e essencialmente corintiano. Assisti, por esses dias, a um ou outro jogo da Eurocopa. Poucos são os chutões e, quando há, jamais vêm acompanhados por palmas. Séculos sob a influência de Descartes, Kant e Maquiavel fazem com que o torcedor aplauda lançamentos longos, inversões de jogo, a tática, enfim, as vitórias do intelecto sobre o instinto, do treinamento sobre o falível corpo humano.

A vitória do europeu é a vitória da lógica. Já para o brasileiro e, mais ainda, o corintiano, trata-se do contrário. País de traficantes, cativos e degredados, time de maloqueiros e sofredores, a vitória para nós é a coroação da improbabilidade, da reversão de expectativa. Não vencemos "por causa", vencemos "apesar de".

O chutão é, portanto, um ato de fé. A bola que sobe aos céus é uma humilde oferenda aos deuses, levando consigo todo nosso empenho, nossa devoção, levando a crença de que, apesar de nossas falhas e fraquezas, se dermos tudo de nós, as divindades descerão de suas altas moradas e nos auxiliarão com aquele gol de canela, no rebote do escanteio, aquele gol de barriga, aos 47 do segundo tempo; aquele gol tão corintiano, capaz de, por instantes, redimir nossa sofrida humanidade.

Que os deuses estejam conosco, esta noite. Vai, Curintcha! E bola pro mato, que é jogo de campeonato!

antonioprata.folha@uol.com.br

Nenhum comentário: