quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024


14 DE FEVEREIRO DE 2024
CARPINEJAR

Marinheiro de primeira viagem

Uma joia nostálgica de Porto Alegre está prestes a ser recuperada. Existe toda uma movimentação do empresariado para resgatar um marco da boêmia da capital gaúcha: o Encouraçado Butikin, agora com o novo nome Encouraçado Hall, com capacidade para 300 pessoas e privilegiando a boa música, mais na linha de bar de audição. Com reabertura prevista para o segundo semestre, ocupará outra vez o casarão 936 da Avenida Independência.

A danceteria foi uma passarela de grandes nomes da nossa MPB: Elis Regina, Vinicius de Moraes, Toquinho, Chico Buarque, Dorival Caymmi, Elizeth Cardoso, Cauby Peixoto. O colunismo social vivia lá dentro, entre espelhos e paetês dos anos 1960 e 1970. Se você queria ser visto, tinha que bater cartão no Encouraçado, com batismo inspirado no clássico filme soviético de Serguei Eisenstein, O Encouraçado Potemkin (1925).

A logomarca da casa, uma pequena sereia com boina da Marinha Imperial Russa, criada pelo cartunista Ziraldo, era o selo mais cobiçado nos convites VIP pela elite da cidade. Minha experiência com o lugar não é das melhores. Não que tenha brigado, não que tenha feito arruaça, não que tenha exagerado no álcool e provocado um vexame. A história é outra.

Pela primeira vez na vida (e a única), fui expulso de uma balada por seguranças, que me pegaram no colo e me deixaram literalmente sentado na escadaria do lado de fora. Adolescente no fim da década de 1990, queria conhecer o ponto tradicional da noite porto-alegrense.

Reuni a minha turma do colégio e parti para a expedição por dentro de um cenário adulto, que não saía da boca do pessoal mais velho da família. Só que eu tinha dinheiro contado para entrar. Não me restava nenhum trocado para gastar com consumação. Levei, portanto, por contenção econômica, um cantil metálico com uísque no bolso do casaco.

Dançava, ia para o canto e bebericava discretamente a minha poção caseira. Retornava para a pista, sempre recorrendo ao meu pit stop para a calibragem dos pneus, escondido nos alicerces do corredor que dava para o banheiro.

Lembro até que, naquela sexta-feira, o saudoso Tatata Pimentel entrevistava clientes nos bastidores. Eu me sentia importante, e malandro. Tentaria me aproximar da menina da escola de que eu gostava platonicamente. Tudo estava à minha feição. Ela não se mostrava acompanhada e reagia com um sorriso cativante aos meus passos de dança desgovernados.

Percebi que chegava o momento de tomar coragem e me declarar. Segui para emborcar o resto do uísque no meu cantinho. Quando levantei a garrafinha, um segurança a apanhou no ar. Disse que era proibido trazer bebida para o local. Não consegui me explicar. Três homens já me rodearam e me tiraram à força dali.

Gritei e esperneei, perdendo definitivamente qualquer pingo de credibilidade diante da desejada colega, que me viu sendo barrado da festa com olhar incrédulo. Depois do escândalo, assisti ao filme de Serguei Eisenstein. Descobri que eu guardava parentesco com o roteiro. Marinheiros faziam motim e despejavam líderes czaristas de um navio da armada imperial.

Meu império juvenil também ruiu no Encouraçado, e voltei para a minha realidade de proletariado. Terei uma segunda chance com a reinauguração. Espero não me vingar pagando uma rodada para todos. Espero me comportar. Não sei. Vamos ver como eu vou reagir ao meu trauma.

CARPINEJAR

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