07 de dezembro de 2013 | N° 17637
CLÁUDIA LAITANO
Ubuntu
Experiências inesquecíveis em viagens podem ser divididas
basicamente em dois tipos: as de reconhecimento e as de espanto. As primeiras
costumam acontecer nos destinos turísticos mais tradicionais. Você cruza uma
esquina e pá!, lá está o Coliseu, onde sempre esteve nos últimos 2 mil anos, e
na hora o cenário real se sobrepõe ao Coliseu tantas vezes imaginado,
provocando a deliciosa vertigem do reconhecimento. Conhecer (ou reconhecer) é o
que leva muitas pessoas a pegar um avião e cruzar o planeta, mas se espantar,
ou seja, topar com algo totalmente inesperado, faz com que a gente volte de uma
viagem com a sensação de que o mundo ficou maior e mais complicado – no bom
sentido.
Estive na África do Sul duas vezes, em 2007 e 2011, e desde
então não parei de recomendar o país como destino ideal para quem gosta de se
surpreender em viagens. Não faltam motivos para se espantar por lá, mas há
também uma certa proximidade com o Brasil – e essa combinação de estranhamento
e familiaridade dá um tempero especial ao país.
Em uma visita a uma comunidade zulu, na província de
KwaZulu-Natal, por exemplo, tive uma das experiências mais intensas em viagens
de que consigo me lembrar: um espetáculo de crianças dançando da forma mais
alegre e contagiante possível – como se fossem as primeiras crianças da Terra a
descobrir o prazer de dançar, e eu a primeira espectadora a descobrir o prazer
de assistir.
Durante essa primeira viagem, chamou minha atenção a
canonização em vida de Nelson Mandela. Bonecos nas lojas de souvenires, toalhas
de mesa, bandeiras, todo um catálogo de quinquilharias pareciam transformar
Mandela em uma espécie de produto de exportação do país.
Nas conversas com sul-africanos, não era muito diferente:
“Madiba” aparecia como uma mistura de pai, soberano, libertador, guia
espiritual. Para um observador latino-americano, ressabiado com líderes que se
aproveitam da adoração popular para construir não um projeto de país, mas um
culto pessoal, bonequinhos de pano com a figura de Mandela, a 10 rands cada,
acendiam um alerta vermelho.
Foi preciso que eu descobrisse o sentido da palavra “ubuntu”
para começar a entender por que Mandela jamais seria reduzido ao papel de líder
messiânico ou de objeto de consumo. Ubuntu é uma palavra dos povos bantos da
África do Sul, de difícil tradução, que significa algo como “eu sou porque nós
somos”. É uma filosofia que existe em vários países africanos e que se baseia
nas alianças e no sentido de comunidade, cuidado mútuo e compartilhamento.
Mandela dizia que ubuntu, na vida cotidiana, é oferecer um
copo de água para um viajante que chega cansado antes mesmo que ele precise
pedir. Essa sabedoria solidária de matriz africana foi decisiva na sua formação
e está na base da sua luta pelo fim do apartheid e nas políticas que adotou
para unir um país dividido. Nada menos compatível com o culto da personalidade.
As capas de jornais e revistas do mundo inteiro no dia de
ontem, honrando em uníssono a memória de um homem que lutou contra o
sectarismo, o individualismo e a intolerância, são a prova de que momentos
“ubuntu” não apenas são possíveis no cínico mundo em que vivemos, mas são um
desejo que milhões de pessoas compartilham.
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